Economia

Regra fiscal é melhor que o teto, mas não agrada 100% nem ao ‘mercado’, nem aos progressistas, diz economista

Para André Roncaglia, atuação política do Banco Central impede o País de ter segurança sobre a queda dos juros diante do novo arcabouço

O economista André Roncaglia. Foto: Divulgação
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A nova regra fiscal, apresentada nesta quinta-feira 30 pelo governo Lula, é um avanço em comparação ao teto de gastos, mas deixará o “mercado” e os setores progressistas felizes e infelizes ao mesmo tempo. A avaliação é do economista André Roncaglia, professor da Unifesp e doutor em Economia do Desenvolvimento pela FEA-USP.

Em linhas gerais, a proposta:

  • fixa o limite de crescimento dos gastos a 70% da variação da receita primária nos 12 meses anteriores (com fechamento em julho). Por exemplo: se o total arrecadado for de 1.000 reais, o governo poderá subir suas despesas em no máximo 700 reais;
  • cria uma banda, ou seja, um intervalo para a meta de resultado primário das contas públicas – a diferença entre o que o governo arrecada e o que ele gasta, excluindo o pagamento de juros da dívida pública. A banda prevê crescimento real da despesa (acima da inflação) entre 0,6% (piso) e 2,5% (teto) ao ano;
  • projeta que se o resultado primário das contas ficar acima do teto da banda, a parte excedente poderá ser utilizada para aumentar os investimentos. A recíproca, porém, está presente: se o resultado primário ficar abaixo do intervalo estipulado, as receitas só poderão crescer até 50% da receita no exercício seguinte; e
  • tem o objetivo de zerar o déficit das contas públicas em 2024, transformá-lo em superávit de 0,5% do PIB em 2025 e gerar um superávit de 1% em 2026.


Leia os destaques da entrevista com André Roncaglia, realizada nesta quarta 30:

CartaCapital: Qual a sua avaliação geral sobre a nova regra fiscal?

André Roncaglia: A regra, do ponto de vista dos resultados, é melhor [que o teto de gastos]. Oferece um ajuste fiscal ousado, rápido, porque zerar o déficit já no ano que vem envolve um esforço fiscal grande. A regra oferece uma abrangência que permite que a gente discuta apenas os parâmetros, ou seja, oferece uma banda de superávit fiscal, que tem uma margem de erro para cima ou para baixo da meta. Então, isso, do ponto de vista da comunicação, é melhor, porque a gente já tem o regime de meta de inflação na cabeça. Você cria um regime análogo do ponto de vista fiscal.

Além disso, a regra prevê gatilhos e alguns ajustes a depender das circunstâncias. Ela não é linear, como era o teto de gastos, em que, independentemente do que ocorresse com a receita, o gasto como participação no PIB ia caindo ao longo do tempo. Ela oferece uma conexão entre arrecadação e gasto, de maneira que uma melhora do resultado fiscal abre espaço para um aumento de gasto, mas um aumento proporcionalmente menor do gasto. Isso equivale a gerar uma poupança.

CC: O plano de gerar superávit primário já em 2025 deve ser o centro das críticas progressistas?

AR: Certamente, porque, como a regra não demarca claramente quais gastos sofrerão corte, para os progressistas e desenvolvimentistas em geral isso é entendido como algo similar a um teto de gastos, uma restrição mais forte do que se esperava.

CC: A nova regra é, afinal, anticíclica, como desejavam setores progressistas?

AR: Ela não é 100% anticíclica. Tem um elemento pró-cíclico, porque o gasto está associado à receita, mas, ao estabelecer pisos para redução de gastos e tetos para elevação de gastos, ela consegue mitigar esse efeito pró-cíclico. Isso é importante.

Imaginemos: na hora em que o superávit começa a crescer muito, tem um teto para superávit. Neste caso, a regra prevê que uma vez que você atinge o teto da banda, o excedente é canalizado para investimento. Obviamente, isso, do ponto de vista progressista, é uma concessão muito grande ao rentismo, porque significa que você só pode ter espaço para investimento uma vez que você atingiu a meta de superávit primário.

CC: Dizia-se que o teto de gastos imposto sob o governo Temer não era crível e exequível. A nova regra preenche esses requisitos?

AR: O teto não era exequível porque, como não previa fatores de crescimento de gastos associados à demografia e ao próprio crescimento econômico, era evidente que uma hora você iria diminuir a atuação do Estado a tal ponto e a paralisação de várias atividades públicas seria inevitável. Tanto que Bolsonaro e Guedes burlaram o teto sistematicamente, fazendo várias emendas constitucionais.

A ideia desse novo regramento é, primeiro, ter um crescimento mínimo do gasto acima da inflação – ele tem um piso de crescimento do gasto que é de 0,6%. Pelo menos ele vai crescer mais que a inflação. No mínimo 0,6% e no máximo 2,5%. Ao estabelecer essa banda de crescimento, ela, por definição, já é menos restritiva que o teto de gastos.

Pode parecer pouco só 0,6% do PIB. Mas, neste ano, são 60 bilhões de reais. Sei que poderia ser mais, porque as nossas demandas são muito grandes, mas tampouco é algo desprezível. E o teto de 2,5%, evidentemente, é uma aspiração. A gente gostaria que a economia crescesse turbinada por investimentos necessários, mas também acho que para o gasto crescer 2,5% acima da inflação vai requerer que o PIB cresça bastante.

CC: Parte do ‘mercado’ pedia que a regra tivesse uma meta para a dívida pública, o que não ocorreu. Seria positivo?

AR: Meta de dívida é muito ruim, pelo fato de que no Brasil ela não é um indicador apenas fiscal. A dívida envolve pressões que vêm do que a gente chama de orçamento monetário, gerido pelo Banco Central. Você tem ali efeito da própria política monetária. Então, usar meta de dívida é muito ruim, porque, se a gente conseguisse separar o que é política de gasto e outras pressões que vêm da operação da política monetária seria fácil, mas no Brasil isso não ocorre.

É muito ruim criar uma meta de dívida, porque pode ocorrer de o Banco Central ter de enxugar muita liquidez, usando operações compromissadas, e você bate a meta de dívida, enquanto o governo, que não fez nada para chegar nesse ponto no sentido de gasto, tem de começar a cortar gastos públicos, sendo que a pressão sobre a dívida está vindo do lado monetário.

CC: A nova Regra fiscal levará, enfim, o Banco Central a cortar a taxa Selic?

AR: Se o Banco Central atuasse tecnicamente, poderia responder com mais segurança. Mas, como ele vem atuando politicamente, com uma agenda oculta que a gente não sabe qual é, é muito difícil saber se ele vai atender aos critérios de decisão que, em tese, deveria seguir.

O Banco Central literalmente abandonou a técnica, porque há vários indicadores que sugerem espaço para diminuir a taxa de juros. O Comitê de Política Monetária já ficou autônomo no descolamento com relação à realidade até no que diz respeito à influência da Faria Lima. O mercado não entende mais que o BC está atuando tecnicamente, não entende que o BC vai conseguir segurar esse juro por muito tempo e já começou a precificar a queda do juro.

Será que o arcabouço vai permitir a queda do juro? Como o BC atua politicamente, a gente vai ver quão longe ele quer levar essa atuação política. Se ele entender que o marco fiscal oferece uma previsibilidade para ajustar as contas no médio prazo, então é possível que na próxima reunião ele já consiga iniciar a redução. Se isso não acontecer, acho que ficará evidente o constrangimento que o BC está tentando impor ao Executivo, e aí é possível que o próximo passo seja o Haddad convocar uma reunião extraordinária do Conselho Monetário Nacional, subir a meta de inflação e comprar essa briga por outro caminho.

Não sei se vai ter efeito. Espero que sim, porque o BC está atrasado já com relação ao mercado. Se mantiver o padrão de o BC seguir o mercado, é possível que nas próximas reuniões a gente já veja até uma redução dos juros. Mas não dá para saber.

CC: A regra fiscal atende mais ao ‘mercado’ ou aos anseios progressistas?

Ela deixa todo mundo feliz parcialmente e todo mundo infeliz parcialmente. Ninguém está saindo dela satisfeito, e esse é o motivo pelo qual o emprego do Haddad é o pior do mundo. Todo mundo vai ficar irritado.

Do lado mais conservador, a medida atende ao anseio de um ajuste fiscal mais rápido, focando na dimensão do superávit primário, mas incomoda na medida em que uma parte importante desse ajuste é feita por meio da recomposição de receita, não por redução de gasto.

Do ponto de vista progressista, tem a parte que é bem recebida, de elevar o gasto acima da inflação, com regras e pisos para investimento, mas tem as partes que incomodam, como a de ter teto para o gasto e a de ter uma banda de superávit que obriga o governo a sistematicamente fazer poupança, fazer esse resultado positivo para pagar o juro da dívida.

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