Cultura

Nara Vidal exorciza a violência doméstica em novo romance 

Em ‘Eva’, a escritora mineira traz uma personagem cuja vida é marcada por abusos físicos e emocionais 

(Todavia/Divulgação)
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“Eu quase consegui evitar o Bolsonaro”, diz a escritora mineira Nara Vidal, em entrevista a CartaCapital por vídeo-chamada. Morando na Inglaterra há algumas décadas, e sem vir ao Brasil há quatro anos, ela, este mês, voltará a pisar por aqui. Mas por dois motivos: visitar a família e divulgar Eva, seu segundo romance, que acaba de chegar às livrarias. 

Embora o livro não seja exatamente sobre o Brasil do presente, ainda assim o é. Questões extremamente atuais, especialmente ligadas à mulher, são a força da narrativa, como em Sorte, seu romance de estreia, que, em 2019, rendeu-lhe o 3o lugar no prêmio Oceanos – o que fez dela a única brasileira entre os vencedores. Nara conta que , na nova obra, “queria exorcizar a violência doméstica”. 

Quando a autora se refere a esse abuso, não é exatamente daquele tipo mais comum na vida e na literatura: um marido ou namorado violento. O que marca a história é uma violência emocional que a protagonista enfrenta desde a infância, com a mãe manipuladora que não perde a oportunidade de dizer à filha que ela tem “o diabo no corpo”. 

Numa pequena cidade do interior, a menina cresce com sentimentos conflitantes, que transitam entre sua plena liberdade – emocional, física, sexual – e uma grande culpa que carrega desde o nome. “O diabo se apossou de meu corpo antes mesmo de eu nascer. Ao chamar meu nome, minha mãe se lembrava de pecado e maldição”, escreve a protagonista-narradora.

Nara é bem direta quando perguntada sobre as origens deste romance, e diz que tem muita coisa sua. “Há situações familiares, episódios que aconteceram comigo. Pensei muito se devia dizer essas coisas quando começasse a divulgar o livro, e resolvi que contaria, sim”, diz. “Há muito descrédito da literatura feita de experiência pessoal. Especialmente se for feita por uma mulher.”

Ela explica que o mercado literário está “acostumado com ficção masculina” e que, por isso, autoras que, como ela, escrevem com tanta franqueza e despudor sobre violência ainda assustam. “Meus livros têm muita violência contra mulher, e escrever é uma maneira de esgotar esse assunto”, afirma. 

As questões que surgem em seus livros não chegaram ali de forma clara ou exatamente consciente, Nara explica que não escolhe um tema e cria um romance a partir disso. As coisas devem acontecer naturalmente. Se gaslighting – uma espécie de manipulação que desacredita a pessoa, feita especialmente contra mulheres – está em Eva não foi de caso pensando. “Os temas surgem com a narrativa,”, explica. “Geralmente, parto de uma personagem, uma situação. Se um romance é panfletário, ele se torna inócuo.”

A autora ressalta que temas contemporâneos como gaslighting, mansplaining e manterrupting sempre existiram, mas só nos últimos anos ganharam nome. “São questões atemporais que começaram a ser discutidas agora, e a literatura encontra nisso um campo vasto”, analisa. “Ao abordar esses temas, a ficção enriquece a discussão. É importante que a arte sirva para se alimentar o debate, mas, insisto, não deve ser criada com esse objetivo”.

A autora começou a escrever Eva em 2016, e era para ser apenas um conto. Ela ia e vinha no arquivo, avançando aos poucos, até que dois anos depois resolveu que seria um romance, narrado por uma personagem com entrega total. O livro é um estudo sobre essa figura cuja vida é marcada pela brutalidade – às vezes, cometida por ela contra si mesma. “A violência contra a mulher é um assunto político, uma discussão de todos”, ressalta.

Apaixonada por Shakespeare – motivo de sua mudança para a Inglaterra –, Vidal conta, durante a entrevista, que, na noite anterior, havia visto uma nova montagem de O Mercador de Veneza. Perguntada sobre como o bardo influencia em sua obra, ela ri e diz que seria muita pretensão pensar nisso. Mas se ela tem estudado e lido o dramaturgo há tantos anos, como não ter algo dele, mesmo que indiretamente, em Eva? “Acho que pode estar na construção das personagens”, arrisca. “Há figuras femininas fortíssimas na obra dele. Em Rei Lear, uma família briga por uma herança, e da caçula, que poderia ser uma figura sem graça, é de onde vem a integridade.”

Às vésperas de regressar ao Brasil com a filha e o filho, a escritora confessa que queria ter evitado o “Brasil de Bolsonaro” – tanto que desde a sua eleição não pisava aqui. Ela conta que as pessoas com quem convive na Inglaterra vêem o presidente com preocupação. Mas conta também, impressionada, que há quem o veja como alguém carismática. “Com essas pessoas, não convivo”, emenda. 

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