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Jogo viciado

O governo tenta regulamentar o mercado de apostas, que gera receita bilionária sem pagar um centavo ao Fisco

Investigação. O confronto entre o Sampaio Correia e o Londrina, pela segunda divisão do Brasileirão, está maculado por suspeita de fraude. Atletas do primeiro clube toparam cometer pênalti em troca de vantagens oferecidas por apostador, revelou o MP goiano – Imagem: Ronald Felipe/Sampaio Corrêa F.C. e GAECO/MPGO
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“Faz um bet aí!” A sugestão feita pelo carismático zagueiro Marcelo, agora de volta ao Fluminense, é o slogan de uma das dezenas de empresas de apostas esportivas eletrônicas que bombardeiam os brasileiros com sua publicidade durante as transmissões de jogos de futebol. Craques como o ex-lateral do Real Madrid, Neymar e Vinícius Jr. são os garotos-propaganda preferidos – e com cachê elevado – de um mercado que não para de crescer mundialmente e que, no Brasil, prospera livre, leve e solto, sem qualquer fiscalização ou regulamentação, a despeito das conexões com o crime organizado que começam a aparecer. Estima-se que as empresas de apostas atuantes no Brasil movimentaram cerca de 10 bilhões de reais em 2022, e todas elas possuem sede no exterior. Ou seja, nenhum centavo foi arrecadado pelo País em forma de taxação ou tributos.

Para tentar pôr ordem na farra, o Ministério da Fazenda prepara uma Medida Provisória que será encaminhada nos próximos dias à Casa Civil e busca regulamentar a operação dos sites de apostas no Brasil. Ao mesmo tempo, discussões envolvendo o Ministério da Justiça, a CBF e o COB visam combater esquemas de manipulação de resultados como o descoberto em fevereiro pelo Ministério Público de Goiás, com gravíssimas suspeitas de fraude em três partidas da última rodada da Série B do Campeonato Brasileiro do ano passado. O problema é grande. Contratada pela CBF, a empresa internacional de monitoramento de apostas Sportradar identificou 139 jogos de futebol sob suspeita de manipulação no Brasil em 2022, número 56% maior do que o registrado no ano anterior (89). Este ano, até o fim de fevereiro, outros 23 jogos suspeitos já haviam sido relatados, o que gera preocupação no mundo esportivo. “A manipulação distorce o futebol na sua essência”, resume Walter Feldman, ex-secretário-geral da CBF.

Ao menos três partidas da Série B do Campeonato Brasileiro de 2022 tiveram resultados manipulados por atletas e apostadores

O primeiro passo é regulamentar o setor. Os sites de apostas esportivas são legais no Brasil desde 2018, por determinação do governo de Michel Temer, mas a edição de um decreto para regular o seu funcionamento em um prazo de até quatro anos foi ignorada pelo governo Bolsonaro. O ex-capitão havia prometido “facilitar a vida” das empresas de aposta, mas as pressões de sua base evangélica contra a jogatina fizeram com que adiasse a promessa ad infinitum. O atual governo pretende acabar com o vácuo de regulamentação. “A falta de detalhamento sobre como a lei deveria ser aplicada transformou o setor, na prática, em uma atividade sem regras a serem cumpridas”, afirma, em nota, o Ministério da Fazenda. Segundo o governo, a MP a ser enviada ao Congresso vai alterar a lei e sanar lacunas, “de modo a permitir que se inicie a normatização da atividade, regulamentando todas as exigências para o funcionamento dos sites, normas de tributação, publicidade, fiscalização de integridade esportiva e financeira de apostas no País”.

Antes de sua divulgação, a MP passará pelo crivo dos ministros Fernando Haddad, da Fazenda, e Rui Costa, da Casa Civil, além do presidente Lula. Ela obrigará as empresas de apostas a manter sedes no Brasil mediante autorização prévia do governo, além de estarem credenciadas junto ao MF para o pagamento de taxas de outorga e submissão de documentos que especifiquem, entre outras coisas, seu capital no País e como vão fazer os pagamentos aos apostadores. A MP também prevê sanções a quem não cumprir esses requisitos, como a proibição de publicidade em meios eletrônicos e de patrocínio em camisas esportivas: “Quem continuar a receber apostas sem cumpri-las estará exercendo uma atividade ilegal e será tratado como tal”, diz uma fonte do MF. Para Feldman, a regulamentação é urgente: “Não faz sentido que o Brasil não tenha benefício algum com a taxação das apostas. Temos de sair dessa fase de hipocrisia legislativa. Há de se criar um sistema de construção de empresas no Brasil, para que a parte majoritária da arrecadação fique por aqui. Nós perdemos bilhões com as apostas sendo realizadas lá fora”.

Garoto-propaganda. Neymar Jr. é um dos astros que incentivam os brasileiros a entrar no nebuloso esquema de apostas – Imagem: Redes sociais

Um dos principais articuladores da discussão sobre a taxação das empresas bet no PT e no grupo de transição para o atual governo, o prefeito de Araraquara, Edinho Silva, saúda a elaboração da MP. “São bilhões de reais em evasão de receitas. Não pode o País ter uma atividade que movimenta recursos do povo brasileiro, que está presente na vida da população, sem normas e regras, sem fiscalização do Estado”, observa. Edinho tem até sugestão de como o retorno pode ser aplicado: “Penso que os recursos obtidos pelo governo federal com essa atividade deveriam ser carimbados para a educação complementar e para a ampliação da educação integral. Enquanto continuamos falando de crianças fora da escola, uma avalanche de apostas está sendo feita fora do País, sem taxação”.

Após a publicação da MP, o Ministério da Fazenda vai tratar em portarias cada ação relativa às apostas esportivas. Haverá uma portaria para regulamentar os meios de pagamento e outra para determinar como serão recolhidos os impostos. A mais importante delas buscará evitar a manipulação de resultados. “Temos conversado com a CBF para entender o sistema que eles usam e já conversamos com o Ministério da Justiça sobre a criação de uma força de segurança específica para combater a manipulação de resultados”, diz a fonte no MF. Quando uma competição tiver um elevado nível de suspeita de manipulação de resultados, acrescenta, será determinado aos operadores que tirem essa competição do quadro de apostas até que seja apurado o que esteja acontecendo. Isso é cada vez mais difícil, pois nos sites é possível apostar em detalhes como, por exemplo, o número de cartões amarelos que serão recebidos por uma das equipes até determinado momento do jogo: “Com a vigilância será possível, entre outras coisas, comparar o comportamento suspeito de um determinado atleta com as apostas feitas naquele jogo. Se fulano levou cartão amarelo, a tecnologia mapeará o volume de apostas naquele cartão amarelo. Esse volume é que vai indicar se há manipulação ou não”.

Todo cuidado é pouco. O aspecto criminal do mundo bet veio novamente à tona com a Operação Penalidade Máxima, do MP de Goiás, que apresentou denúncia, prontamente aceita pela Justiça, contra 14 atletas e apostadores pela tentativa de fraude na Série B do Brasileirão. O esquema envolveu jogadores de Sampaio Corrêa, Vila Nova e Tombense que deveriam cometer pênaltis ainda no primeiro tempo de suas respectivas partidas, para que a aposta viciada fosse ganhadora. Os oito atletas tornados réus são Joseph de Oliveira Figueiredo (Tombense), Gabriel Domingos de Moura e Marcus Vinícius Barreira (Vila Nova) e Ygor de Oliveira Ferreira, Allan Godói dos Santos, André Luís Siqueira Júnior, Paulo Sérgio Corrêa e Mateus da Silva Duarte (Sampaio Corrêa). Já os denunciados pela cooptação dos jogadores ou pela realização das apostas são Camila Silva da Motta, Bruno Lopes de Moura, Ícaro Calixto dos Santos, Luís Felipe de Castro, Victor Yamasaki Fernandes e Zildo Peixoto Neto.

A quadrilha agia por intermédio da empresa BC Sports Management, pertencente ao casal Camila e Bruno. A conta da empresa movimentou 1 milhão de reais somente em 2022. “Houve transferências suspeitas mediante depósitos em espécie em caixas eletrônicos e com pulverização das operações, o que indica a utilização da conta para a movimentação dos valores oriundos da manipulação das apostas”, diz o relatório do MP-GO.

“Não faz sentido que o Brasil não tenha benefício algum com a taxação das apostas”, diz Walter Feldman, ex-secretário da CBF

A fraude foi levada ao conhecimento dos procuradores goianos pelo presidente do Vila Nova, Hugo Bravo, após ter sido descoberta quase por acaso. De início, tudo parecia dar certo para os criminosos. Em São Luís, na partida contra o Londrina, o jogador conhecido como Mateusinho cumpriu o combinado e cometeu pênalti ainda na primeira etapa. O mesmo fez Joseph na partida em Criciúma. Curiosamente, ambas as cobranças foram desperdiçadas. Mas veio o inesperado quando os dois jogadores do Vila Nova cooptados não foram escalados para a partida contra o Sport, em Goiânia. Sem eles não houve pênaltis e o esquema ruiu, fato que enfureceu a quadrilha. Ao mesmo tempo que decidiram não pagar o acertado com os jogadores de Sampaio Corrêa e Tombense, passaram a cobrar dos atletas do Vila Nova – Gabriel e Marcus Vinícius, conhecidos como Domingos e Romário – o valor que deveriam ter ganhado com a aposta manipulada. Com medo, os atletas procuraram o presidente do clube, que é policial, e o caso chegou ao Ministério Público.

O buraco é bem profundo e as investigações já dão conta de que a mesma BC Sports Management teria atuado em jogos de times de menor expressão nos campeonatos estaduais de Goiás, Mato Grosso, Minas Gerais e Rio Grande do Sul: “Precisamos avançar, mas é possível afirmar que esse grupo atuou não só em 2022 e não só na Série B”, diz o promotor Fernando Cesconetto, responsável pelas investigações. Com o futebol sendo praticado em praticamente todas as cidades e a possibilidade quase infinita de apostas, detectar as fraudes exigirá esforço. “Na CBF recebíamos informações sobre a possibilidade de ocorrência dessas fraudes na base do futebol. Em geral, esses criminosos se afastavam dos times maiores, que têm visibilidade muito grande. Foi muita audácia terem caminhado para a Série B, mas isso mostra o poder dos fraudadores”, diz Feldman.

Tributos. Haddad e Silva querem taxar o setor para ampliar os investimentos sociais – Imagem: Redes sociais

No caso investigado em Goiás, os clubes são considerados vítimas. O mesmo acontece com as operadoras de apostas, avalia o governo: “As próprias operadoras vão querer colaborar, porque a manipulação de resultados quebra a banca. Os clubes também sofrem. O único sujeito que tira vantagem da manipulação de resultados é o fraudador”, diz a fonte no MF. Com o dinheiro abundante, é inevitável que atores os mais diversos se sintam atraídos. Um exemplo que fala por si é a descoberta, feita pelo MP do Rio de Janeiro em agosto passado, de que Rogério Andrade, rei do jogo do bicho e das máquinas caça-níqueis, havia migrado parte de seus negócios para a empresa Heads Bet, com sede em Curaçao, ilha holandesa no Caribe.

Enquanto isso, os 20 clubes da Série A do Brasileirão ostentaram patrocínios de casas de aposta em 2022, fato que deve se repetir este ano e que aponta para um problema, no mínimo, ético. “A Fifa inicialmente não aceitava que casas de apostas fossem patrocinadores, mas depois não conseguiu segurar”, comenta Feldman. “Fizemos um debate com detentores dos direitos de transmissão dos jogos no Brasil e nos disseram também que não aceitariam, mas agora nós estamos vendo a rea­lidade. A adesão dos clubes mostra que a economia é inexorável e determinante.” •

Publicado na edição n° 1253 de CartaCapital, em 05 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Jogo viciado’

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