Política

As mentiras e contradições do discurso de Bolsonaro na ONU

Além de negar os casos de corrupção que rondam sua família, o presidente voltou a defender o uso de medicamentos sem eficácia contra a Covid

Foto: POOL / AFP
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O discurso de Jair Bolsonaro na abertura da 76ª Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas foi marcado por mentiras e imprecisões. Primeiro chefe de estado a falar, o ex-capitão voltou a defender, diante das delegações do mundo todo, o uso de medicamentos sem eficácia para a Covid-19, mostrando-se ainda favorável ao ‘tratamento precoce’ e contra medidas sanitárias mundialmente reconhecidas, como o lockdown.

 

O presidente também usou de dados questionáveis para anunciar ações benéficas de proteção ao meio ambiente, às populações indígenas, além de se esquivar dos casos de corrupção que seguem em apuração e envolvem o clã Bolsonaro.

CartaCapital avaliou trechos do discurso de Bolsonaro. Confira.

FALSO: Estamos há 2 anos e 8 meses sem qualquer caso concreto de corrupção.”

A CPI da Covid, que teve a entrega de seu relatório adiada para outubro, pretende enquadrar o presidente Jair Bolsonaro em crime de corrupção em relação à vacina indiana Covaxin. Na segunda-feira 20, o relator da CPI, o senador Renan Calheiros (MDB-AL) afirmou: “Bolsonaro cometeu crime de corrupção no caso da Covaxin e terá que ser responsabilizado no relatório final da Covid’.

Calheiros explicou que a participação do presidente se deu na ligação ao primeiro-ministro da Índia Narendra Modi. Na conversa, Bolsonaro solicitou a reserva das 20 milhões de doses da vacina indiana. O ex-capitão teria, portanto, ciência de toda a negociação, deixando suas ‘digitais’ no acordo — que daria um prejuízo de 1,6 bilhão de reais aos cofres públicos brasileiros. A compra só foi desfeita depois que a CPI da Covid revelou suspeitas de corrupção.

Bolsonaro também pode ser enquadrado em crime de prevaricação no caso da intermediação da Precisa Medicamentos, que teria atuado para intermediar a compra de imunizantes da farmacêutica indiana Bharat Biotech com o Ministério da Saúde.

“A intermediação é cercada ainda de outras irregularidades das quais Bolsonaro tinha conhecimento e não agiu para impedir. As provas da omissão do presidente estarão também no relatório para embasar a denúncia de prevaricação”, declarou Calheiros.

Outros temas polêmicos, e em investigação, rondam o clã Bolsonaro, caso do suposto esquema de rachadinha praticado pelos filhos do presidente, vereador Carlos Bolsonaro e senador Flávio Bolsonaro, e que seriam financiadores de funcionários fantasmas. Na operação, os funcionários chegariam a devolver 90% de seus salários aos políticos.

Recentemente, a Justiça autorizou o Ministério Público do Rio de Janeiro a ter acesso aos dados bancários e fiscais de Ana Cristina Siqueira Valle, ex-mulher de Bolsonaro. Os imóveis comprados por Bolsonaro e Ana Cristina enquanto estiveram casados são alvos de suspeita. Os indícios apontam para lavagem de dinheiro, já que o casal teria adquirido os locais usando dinheiro em espécie, prática apontada como suspeita pelo MP-RJ. Ao todo, Bolsonaro e Ana compraram cinco terrenos, um escritório e uma casa. Ao fim do relacionamento os dois contavam com 14 imóveis, boa parte adquirida de forma suspeita, segundo apontam as investigações

IMPRECISO: “Nossas estatais davam prejuízos de bilhões de dólares, hoje são lucrativas.”

O presidente Jair Bolsonaro deu a entender que as empresas estatais federais passaram a dar lucros a partir de seu governo iniciado em 2019, o que não se sustenta. Segundo o Ministério da Economia, em 2015, o conjunto de empresas estatais sob controle direto ou indireto da União teve resultado negativo de 32 bilhões. Já no ano seguinte, durante o governo de Dilma Rousseff (PT) e Michel Temer (MDB) as empresas registraram lucro de 4,4 bilhões. Desde então, segundo levantamento da agência Aos Fatos, o resultado positivo aumentou: R$ 24,9 bilhões em 2017, R$ 71,3 bilhões em 2018 e, em 2019, primeiro ano de Bolsonaro no governo, de R$ 109,1 bilhões. Já no ano passado, a soma dos lucros das empresas caiu para R$ 60,7 bilhões.

IMPRECISO: “Somente no bioma amazônico, 84% da floresta está intacta, abrigando a maior biodiversidade do planeta. Lembro que a região amazônica equivale à área de toda a Europa Ocidental. Na Amazônia, tivemos uma redução de 32% do desmatamento no mês de agosto, quando comparado a agosto do ano anterior.”

A redução de 32% no desmatamento apontada por Bolsonaro em seu discurso é controversa. Dados divulgados na segunda-feira 20 pelo Sistema de Alerta de Desmatamento (SAD) do Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) revelam que o mês de agosto deste ano teve o pior nível de desmatamento dos últimos 10 anos de monitoramento: 1606km² foram desmatados, segundo o levantamento.

O número representa, segundo o Imazon, um aumento de 7% de desmatamento em relação ao mesmo mês de 2020. Esse seria o quinto mês de 2021 com recordes no desmatamento desde 2012, segundo o instituto. Março, abril, maio e julho também estiveram no auge em 10 anos.

Os dados divergem dos apresentados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) que registrou 918km² de área desmatada na Amazônia em agosto de 2021. Pelo cálculo do instituto, divulgado em 10 de setembro, o valor representaria uma queda de 33% frente ao mesmo mês de 2020. Ainda assim, o Inpe destaca que o número de desmatamento em agosto é quase o dobro do registrado em 2018 (473km²) último ano antes do início do governo Bolsonaro.

FALSO: “Antecipamos, de 2060 para 2050, o objetivo de alcançar a neutralidade climática. Os recursos humanos e financeiros, destinados ao fortalecimento dos órgãos ambientais, foram dobrados, com vistas a zerar o desmatamento ilegal.”

Diferentemente do que o presidente afirma, sua gestão é marcada por um claro desmonte das estruturas de fiscalização ambiental. Em maio deste ano, levantamento obtido com exclusividade por CartaCapital, mostrou que sob a batuta de Ricardo Salles no Ministério do Meio Ambiente, o governo federal, em apenas um ano, assinou 721 medidas que impactaram diretamente a situação ambiental brasileira. Redução de fiscais do Ibama e retirada de atribuições do Inpe também marcaram a atual gestão. As políticas ambientais de Bolsonaro são alvos de três inquéritos no Ministério Público Federal.

IMPRECISO: “14% do território nacional, ou seja, mais de 110 milhões de hectares, uma área equivalente a Alemanha e França juntas, é destinada às reservas indígenas.”

A extensão do território nacional ocupada por terras indígenas é de 12,7%, não 14%, conforme citou o presidente, conforme apurou a agência Aos Fatos. De acordo com dados da Funai (Fundação Nacional do Índio), há atualmente 441 terras regularizadas e seis interditadas (com restrição de uso e entrada de terceiros, para proteção de povos isolados), que ocupam, ao todo, 108.028.774 hectares. A área é, de fato, superior à soma dos territórios da Alemanha (35,7 milhões de hectares) e da França (54,9 milhões de hectares).

FALSO: “Sempre defendi combater o vírus e o desemprego de forma simultânea e com a mesma responsabilidade. As medidas de isolamento e lockdown deixaram um legado de inflação, em especial, nos gêneros alimentícios no mundo todo.”

Conforme mostrou reportagens recentes de CartaCapital, basta analisar a evolução dos preços dos distintos itens desde o início da pandemia para facilmente constatar que não, o lockdown não é responsável pelo aumento de preços. Os principais impactos ocorreram em itens da alimentação no domicílio – arroz, carne, leite e óleo –, que respondem por grande parcela das despesas das famílias, e são fornecidos por grandes complexos agroindustriais cujas produção e vendas não só não caíram com o distanciamento social, mas cresceram nos últimos meses. Como, aliás, declarou o próprio presidente, “o campo não parou”.

A situação dos preços dos alimentos não tem nenhuma relação com o distanciamento social, mas, sim, com os altos preços no mercado internacional, a desvalorização do real perante ao dólar e o fim dos estoques reguladores no País.

CartaCapital também produziu uma reportagem especial em vídeo sobre o tema.

DISTORCIDO: “No Brasil, para atender aqueles mais humildes, obrigados a ficar em casa por decisão de governadores e prefeitos e que perderam sua renda, concedemos um auxílio emergencial de US$ 800 para 68 milhões de pessoas em 2020.”

Bolsonaro distorce o valor do pagamento e dá a entender que cada uma das 68 milhões de pessoas receberam mensalmente o equivalente a 800 dólares em 2020, quando o benefício mensal ficou bem distante disso. Ainda que o valor a que se refere o presidente seja o total, o montante também não é exatamente o divulgado.

O auxílio emergencial foi de 600 reais, chegando ao máximo de 1.200 reais mensais. Foram pagas apenas cinco parcelas neste valor. O governo complementou o benefício com mais quatro parcelas de 300 reais, chegando ao máximo de 600 reais. A maioria esmagadora dos brasileiros recebeu o benefício de menor valor.

Convertidos em valores do ano passado, quando um dólar foi em média 5,38 reais nos meses em que foram pagos o auxílio, 800 dólares seriam 4.300 reais. Bolsonaro, portanto, arredondou para mais os 4.200 totais pagos para boa parte dos beneficiários.

Cabe ressaltar, no entanto, que o governo pretendia pagar um valor infinitamente menor em um total de menos parcelas. A Medida Provisória 1.039 encaminhada por Bolsonaro ao Congresso previa o pagamento de apenas três parcelas de 150 reais. O valor inicial só foi alterado para os 600 reais por emendas feitas pela oposição.

Importante destacar ainda que, mesmo em meio a novas ondas de Covid-19, o programa alardeado do governo foi reduzido em 2021, passando aos valores de 150 e 375 reais. As regras para acessar o benefício também foram dificultadas.

FALSO: “A pandemia pegou a todos de surpresa em 2020. Lamentamos todas as mortes ocorridas no Brasil e no mundo.”

Outra mentira contada por Bolsonaro é o fato de que a pandemia pegou a todos de surpresa. O Brasil teve ao menos um mês para se antever ao que poderia ocorrer em caso de entrada do vírus no País. Isso porque, os primeiros casos em solo nacional só foram registrados semanas depois do vírus circular na Europa e mais de um mês depois das primeiras notícias vindas da China. O descaso com as previsões internacionais pelo governo fica evidente pela demora em estabelecer protocolos de segurança na entrada de turistas vindos de regiões afetadas pela Covid-19 em portos e aeroportos brasileiros.

Nesta declaração, Bolsonaro disse ainda lamentar todas as mortes ocorridas, postura bem distante da registrada diversas vezes no cercadinho do Palácio do Alvorada. Aos apoiadores, Bolsonaro chegou a ironizar mortes dizendo não ser coveiro.

FALSO: “Apoiamos a vacinação, contudo o nosso governo tem se posicionado contrário ao passaporte sanitário ou a qualquer obrigação relacionada a vacina.”

O atual governo sempre foi contrário à vacinação e só passou a apoiar minimamente a imunização após a pressão da população, oposição, governadores e prefeitos. Um pequeno apoio vindo de integrantes do Planalto passou a ser visto após os primeiros protestos ‘Fora, Bolsonaro’. Pessoalmente, no entanto, o ex-capitão sempre se colocou contra a vacinação, constantemente propagandeando informações falsas sobre a baixa eficácia dos imunizantes, em especial, a vacina chinesa Coronavac.

O presidente é ferrenho defensor da chamada imunidade de rebanho e, na contramão do que diz a ciência, acredita que contrair o vírus ofereça respostas imunológicas maiores do que a vacinação. Até o momento não se vacinou — se fez, esconde a informação sob um sigilo de um século.

Outra comprovação de que nunca fez questão de iniciar a vacinação no Brasil foi o atraso imposto na negociação de compra de doses da vacina da Pfizer. Bolsonaro e equipe ignoraram mais de 81 tentativas de contatos da farmacêutica, que pretendia vender milhões de doses ao Brasil a um custo menor do que o fechado mais recentemente pela atual gestão. A equipe do ex-capitão chegou a alegar dificuldades com o inglês para justificar o atraso nas respostas ao fabricante. Em contrapartida, acelerou a compra de doses que sequer existiam ou mesmo que nem estavam aprovadas pela Anvisa, mas que, ao que tudo indica, garantiam propina a integrantes do alto escalão do governo federal.

DISTORÇÃO: “Desde o início da pandemia, apoiamos a autonomia do médico na busca do tratamento precoce, seguindo recomendação do nosso Conselho Federal de Medicina. Eu mesmo fui um desses que fez tratamento inicial. Respeitamos a relação médico-paciente na decisão da medicação a ser utilizada e no seu uso off-label. Não entendemos porque muitos países, juntamente com grande parte da mídia, se colocaram contra o tratamento inicial.”

Neste trecho do discurso, Bolsonaro fala a verdade ao dizer que seu governo sempre apoiou o chamado ‘tratamento precoce’ com o uso dos medicamentos que compõem o ‘kit covid’. O presidente, no entanto, omite a ineficácia cientificamente comprovada da ação. OMS e centenas de outros estudos nas mais respeitadas universidades e instituições do mundo concluíram que a cloroquina, ivermectina e outros remédios que integram o kit não são responsáveis por qualquer benefício ao paciente contaminado pelo vírus. Dados coletados apontam, inclusive, para o caminho contrário: efeitos colaterais graves e mortes em quem fez uso indiscriminado do ‘tratamento’.

A defesa do ‘kit’ é inclusive um dos crimes que pesam sobre Jair Bolsonaro e deve constar no relatório final da CPI da Covid no Senado. A postura também será denunciada em tribunais penais internacionais.

Bolsonaro diz não compreender o motivo de outros países não adotarem a mesma política que adotou no Brasil. A justificativa, evidentemente, se trata da falta de evidências científicas sobre o uso dos medicamentos. O próprio Ministério da Saúde reconheceu recentemente que o uso do kit covid é ineficaz. Ainda assim, foi responsável por patrocinar propagandas nas redes sociais sobre o tratamento e colocar em prática a política que resultou no colapso do sistema de Saúde em Manaus. A defesa dos remédios segue sendo feita por Bolsonaro e demais aliados do governo federal.

O mais recente escândalo revelado na atual gestão é o caso da Prevent Senior, em que médicos foram obrigados a usarem os medicamentos, resultando em mortes de pacientes. Os dados reais foram omitidos pela operadora de Saúde e as falsas descobertas foram usadas por Bolsonaro para defender sua política genocida.

FALSO: “No último 7 de setembro, data de nossa Independência, milhões de brasileiros, de forma pacífica e patriótica, foram às ruas, na maior manifestação de nossa história, mostrar que não abrem mão da democracia, das liberdades individuais e de apoio ao nosso governo.”

Os atos antidemocráticos do dia 7 de setembro em capitais brasileiras ficaram longe de ser a maior manifestação da história brasileira. Os protestos não chegam nem mesmo a serem os maiores atos promovidos pelos bolsonaristas no Brasil nos últimos anos. Estimativas indicam que, em São Paulo, onde Bolsonaro fez ameaças de ruptura democrática e promoveu ataques ao ministro Alexandre de Moraes, o evento reuniu pouco mais de 125 mil pessoas. A baixa adesão ao ato foi lida como fracasso do governo, já que organizadores esperavam 2 milhões de participantes.

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