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Jair já era

O ‘Capitólio rodoviário’ fracassa, Bolsonaro é forçado a reconhecer a derrota e oferece ao Brasil um discurso medíocre

Imagem: Caio Guatelli/AFP e Evaristo Sá/AFP
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O Brasil e o mundo esperaram 43 horas para saber o que Jair Bolsonaro tinha a dizer sobre o resultado das eleições do domingo 30. Esperaram em vão. Em breves e esquecíveis dois minutos, o primeiro e único presidente pós-ditadura a não conseguir a reeleição desde a adoção do mecanismo balbuciou meia dúzia de chavões sobre liberdade, pátria, Deus e família, manteve acesa a chama do golpismo ao dizer que “os atuais movimentos populares (os bloqueios nas estradas) são fruto de indignação de injustiça de como se deu o processo eleitoral” e, apesar do escasso tempo, conseguiu acrescentar novas mentiras ao seu estoque infindável. Foi um discurso rancoroso, lacônico, pedestre, faccioso, ao feitio do capitão: endereçado à pequena fauna de aloprados e fanáticos de sua base em detrimento da maior parte dos 58 milhões de eleitores que apertaram o número 22 nas urnas.

Enquanto o presidente prolongava o silêncio, seus antigos aliados se preparavam para os novos tempos

Os fanáticos, aliás, amotinados em mais de 200 rodovias espalhadas por 20 estados, interpretaram o discurso como quiseram. Para eles, Bolsonaro havia dado a senha para a continuidade dos protestos, hasta la victoria. “Queremos a intervenção federal, militar ou não”, repetiam os arruaceiros autômatos. Nem eles pareciam saber do que se trata. Intervenção federal virou um mantra, assim como o termo “descondenado” para se referir a Lula. Viu-se de tudo. Orações, gritos de guerra e até a comemoração de uma falsa notícia a respeito da prisão do ministro Alexandre de Moraes, o inimigo número 1. A conivência ou o apoio explícito de agentes da Polícia Rodoviária Federal, corporação infectada pelo bolsonarismo, animou a turba, mas a decisão de ­Moraes, “sempre ele”, de multar ou até prender o diretor-geral da PRF, Silvinei Vasques, serviu como balde de água fria no que tem sido chamado jocosamente de “Capitólio rodoviário”, alusão à invasão de eleitores de Donald Trump do Congresso dos EUA em 6 de janeiro do ano passado. Ratificada pelos demais ministros do Supremo Tribunal Federal, a ordem deu ainda permissão às Polícias Militares para dispersar as manifestações, em nome da ordem pública, que afetaram o abastecimento de combustíveis e itens básicos, vacinas incluídas, em vários pontos do País.

Moraes foi obrigado a outra vez enquadrar Vasques, diretor-geral da PRF, bolsonarista que infectou a corporação – Imagem: Carlos Moura/STF e Valter Campanato/ABR

E o que disse Bolsonaro a respeito? No discurso mofina da terça-feira: “As manifestações pacíficas serão bem-vindas, mas os nossos métodos não podem ser os da esquerda, que sempre prejudicaram a população, como invasão de propriedades, destruição de patrimônio e cerceamento do direito de ir e vir”, palavras balbuciadas a fórceps, depois do apelo de empresários prejudicados pela paralisação. Como o pronunciamento dúbio não teve efeito e os financiadores de campanha continuaram irritados, não restou outra opção ao derrotado senão ser mais explícito. Em uma live na noite da quarta-feira, visivelmente contrariado, o presidente pediu aos seguidores o desbloqueio das rodovias. No caso do procurador-geral, Augusto Aras, e do ministro da Justiça, Anderson Torres, imperou o silêncio. Aras queria conceder 24 horas para a PRF explicar os bloqueios, proposta considerada um insulto por Moraes, que preferiu, de próprio punho, tomar providências imediatas ante a gravidade dos fatos. Enquanto isso, vídeos expunham a cumplicidade de policiais rodoviários. Em um deles, um agente orienta os bolsonaristas a manter o paredão por 72 horas (circulava então a tese de que na quarta-feira 2, em pleno Finados, a tal intervenção “federal” seria deflagrada). Em outra imagem, um policial corta a grade de acesso ao aeroporto de Guarulhos para facilitar os bloqueios. A omissão de Aras levou um grupo de mais de 180 procuradores federais a cobrar a investigação da participação de autoridades do governo nos protestos. A rápida instalação de banheiros químicos e mesas com comida e bebida sugerem a pertinência do pedido. Não só, trazem indícios de que as manifestações nada tiveram de espontâneas e provavelmente foram bancadas por empresários e agricultores insatisfeitos com o resultado das urnas. Durante o feriado e após a intervenção das PMs, acionadas por governadores, entre eles aliados de primeira hora de Bolsonaro, o golpe na estrada começou a minguar: o número de interdições havia caído pela metade e a expectativa era de uma desobstrução total das vias até a sexta-feira 4.

O comportamento mesquinho de Bolsonaro lança dúvidas sobre seu futuro. Embora tenha recebido 58 milhões de votos e ressaltado o feito no discurso minúsculo, o capitão ainda terá de provar, sem a caneta, o foro privilegiado, os conselheiros do “Centrão” e o cercadinho na porta do Palácio da Alvorada à disposição, se tem mesmo envergadura para liderar a metade do Brasil que não votaria em Lula nem se ele se pintasse de verde-amarelo. Ou se sua eleição quatro anos atrás não passou de um acidente de percurso grave, quase fatal, mas superado. “O Bolsonaro parece ser alguém com pouca disposição para o trabalho, para organizar as coisas. Então, a gente precisa ver se haverá um grupo disposto a mantê-lo como um tipo de líder, mesmo que não faça muita coisa, que trabalhe em torno dele como se fosse um partido político.  Eu acho difícil os empresários que bancavam o bolsonarismo continuarem nessa toada, a não ser os mais ideológicos, como o Luciano Hang. Os outros, a começar pela turma do agronegócio, são mais aliados de ocasião, estão mais interessados em não ficar mal em qualquer governo”, acredita o cientista político João Feres Júnior, professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. “Bolsonaro pode sair de cena, mas os bolsonaristas vão continuar seu legado de desobediência das leis e de críticas ao sistema. Vide Carla Zambelli com a arma em punho pelas ruas de São Paulo a perseguir um cidadão desarmado”, avalia a cientista política Vera Chaia, da PUC-SP.

Dúvida: apesar dos 58 milhões de votos, Bolsonaro tem envergadura para liderar a oposição?

Segundo Túlio Velho Barreto, cientista político da Fundaj, o bolsonarismo representa a expressão contemporânea do nazifascismo no Brasil, algo que não é novo, remete ao Integralismo dos anos 1930, cujo lema era o mesmo: “Deus, Pátria e Família”. “De inexpressivo deputado federal, Bolsonaro tornou-se líder a partir da omissão, conivência e leniência daqueles que, no interior das instituições, mais precisamente no Legislativo e no Judiciário, poderiam tê-lo barrado, ainda que tardiamente, desde 2016, quando votou pelo afastamento de Dilma Rousseff enaltecendo a ditadura e um torturador”, afirma. “A tolerância com seu comportamento e discurso levou-o a dar visibilidade e a liderar a extrema-direita, até então ‘adormecida’, que se manifestava apenas a partir de pequenos e inexpressivos grupos, sem nunca ter deixado de existir. Portanto, deu-lhe visibilidade e voz, e a empoderou.” Fora do governo, pondera Barreto, a tendência é Bolsonaro perder importância e se cercar tão somente do núcleo mais ideológico no Congresso. “A força política e o capital eleitoral dessa extrema-direita tendem a se reduzir comparativamente ao que temos hoje. Mas, para isso, será fundamental punir rigorosamente Jair Bolsonaro pelos crimes cometidos ao longo do seu mandato, até para que sirva de exemplo. E também alguns de seus familiares e apoiadores mais radicais, a exemplo de Carla Zambelli e Roberto Jefferson, sob pena de se repetir o que aconteceu com o próprio Bolsonaro, ou seja, participar do jogo democrático para contestar e destruir a democracia.”

Se hay gobierno, soy a favor. Lira e o Centrão subvertem o velho lema dos anarquistas. A turma está pronta a abraçar Lula – Imagem: Zeca Ribeiro/Ag.Câmara

Como sempre acontece na vida política brasileira, é esperado que muitos aliados de Bolsonaro no Congresso migrem para a base do governo Lula, sobretudo os parlamentares do Centrão, cuja linha de atuação (hay gobierno? Soy a favor) subverte um conhecido lema anarquista. ­Arthur Lira, presidente da Câmara, foi um dos primeiros a reconhecerem a vitória de Lula na noite do domingo 30. “O Brasil deu mais uma demonstração da vitalidade da sua democracia, da força das suas instituições e de nosso povo. A vontade da maioria manifestada nas urnas jamais deverá ser contestada e seguiremos em frente na construção de um país soberano, justo e com menos desigualdades.” Na quarta-feira 2, após Bolsonaro quebrar o silêncio e o ministro da Casa Civil, Ciro Nogueira, abrir as portas para o processo de transição, circulava pelo noticiário a informação de que líderes do Centrão fizeram chegar a Lula um recado: estão prontos para negociar os termos do ingresso na base de apoio do futuro governo. Bolsonaristas radicais, ­Zambelli e Damares Alves incluídas, também publicaram mensagens nas redes sociais na qual admitiam, de forma enviesada, a derrota. Ricardo “passar a boiada” ­Salles, ex-ministro do Meio Ambiente, apelou: “O resultado da eleição mais polarizada da história do Brasil traz muitas reflexões e a necessidade de buscar caminhos de pacificação de um país literalmente dividido ao meio. É hora de serenidade”. A mensagem soa como um pedido de salvo-conduto do futuro deputado, alvo de inúmeras investigações por crimes cometidos durante sua passagem pela pasta. Apesar de circularem áudios do senador Flávio Bolsonaro a estimular os bloqueios golpistas das estradas, o filho do presidente comentou no Twitter o resultado das urnas, sinalizando ter reconhecido a derrota. “Obrigado a cada um que nos ajudou a resgatar o patriotismo, que orou, rezou, foi para as ruas, deu seu suor pelo país que está dando certo e deu a Bolsonaro a maior votação de sua vida! Vamos erguer a cabeça e não vamos desistir do nosso Brasil! Deus no comando!” Junta-se ao grupo Hamilton Mourão, vice-presidente da República e senador eleito pelo Rio Grande do Sul, que enviou cumprimentos ao seu substituto, Geraldo Alckmin, e recebeu de volta um telefonema do companheiro de chapa de Lula. Em entrevista a O Globo publicada na quarta 2, Mourão foi explícito, ao contrário de seu chefe: “Não adianta chorar. Nós perdemos o jogo”.

As demissões na Jovem Pan mostram que a mídia chapa-branca bolsonarista também se apressa em pular do barco

Analistas políticos citam o despreparo de Bolsonaro para liderar a extrema-direita, apesar de reconhecê-lo como um político popular e carismático, amparado por uma máquina de difamação e mentiras nas redes sociais. Quem seria capaz de substituí-lo? Dois nomes têm sido recorrentemente citados: Tarcísio de Freitas, eleito governador de São Paulo sem nunca ter morado no estado mais rico da federação, e Romeu Zema, que conquistou um segundo mandato em Minas Gerais ainda no primeiro turno. Detalhe: as últimas oito eleições presidenciais jogam por terra a tese de que governadores de estados influentes ficam automaticamente habilitados a disputar de forma competitiva o poder central. “Bolsonaro nunca foi figura tão forte, líder de massas. Não é uma liderança que tem um enraizamento no eleitorado que ativa uma memória positiva dos brasileiros. Ele apenas ganhou força nesses últimos anos com o avanço do neoconservadorismo, mas em outro momento pode vir a ser outra liderança. Os seguidores de Bolsonaro estão sem líder, estão meio soltos, neste momento estão órfãos. O que que vai acontecer com eles?”, pergunta Joyce Martins, cientista política da Universidade Federal de Alagoas. “Fora do poder, nem ele nem seus aliados fiéis terão a mesma força. Então, pode ser que haja, sim, esse fenômeno de ‘rei morto, rei posto’.” Ao demorar a reconhecer a derrota, acrescenta a professora, o presidente deixou de dialogar com sua base e orientá-la a respeito de sua atuação na oposição. “Apesar da erosão do País, ele sai enfraquecido, porque ele não pode tudo, nem é aquilo que pensou que era: ‘Ah, eu posso dizer o que eu quiser a vida inteira e a vida inteira vou ser referendado porque eu tenho as redes sociais, tenho as lideranças religiosas do meu lado’. Aquilo não era verdade e o eleitor percebeu.”

Não só na política haverá uma reacomodação do poder. A mídia bolsonarista igualmente mede os rumos dos ventos. No mais notório caso de desfaçatez e oportunismo, o Grupo Jovem Pan, covil extremista e central de difusão de fake news, punida pela Justiça Eleitoral durante a campanha, não perdeu um escasso minuto para se adequar aos novos tempos. “Rei morto, rei posto”, como ressaltou Joyce Martins. Azar dos mais aguerridos correligionários do capitão que faziam as vezes de jornalistas. ­Augusto Nunes, Caio Coppolla, ­Guilherme Fiúza, Maicon Mendes e ­Carla Cecato, licenciada para apresentar o ­programa eleitoral de Bolsonaro, acabaram demitidos sumariamente. É provável que não passem muito tempo na fila do desemprego. Eleito em São Paulo, Tarcísio de Freitas terá sob seu controle a TV Cultura. Quem sabe…

A tendência, concordam os analistas ouvidos por CartaCapital, é Bolsonaro – não o bolsonarismo – ingressar em um período de ostracismo político. Terá, além disso, o incômodo de prestar contas ao Judiciário, em decorrência das várias investigações que correm contra ele, por omissão na pandemia, ameaças às instituições e suspeitas de corrupção. A partir de janeiro, as ações serão enviadas à primeira instância e o capitão ficará à mercê da Justiça comum. Há quatro inquéritos contra o ainda presidente no STF, além das denúncias encaminhadas pela CPI da Covid e barradas por Aras, o “engavetador-geral” da República. “É preciso rever o papel do Ministério Público, que, nos últimos anos, tem deixado muitos gaps. Há que ter formas de fazer maior cobrança e maior prestação de contas. O procurador-geral não pode ter o poder soberano de fazer arquivamentos. Isso tem de ser cuidado pelos próximos governos, pelos próprios próximos Parlamentos”, pondera Lênio Luiz Streck, jurista e professor de Direito Constitucional. Caso Bolsonaro venha mesmo a responder por seus crimes, será um bom começo. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1233 DE CARTACAPITAL, EM 9 DE NOVEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Jair já era”

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