Política

Participação privada na mineração nuclear é ampla demais e traz riscos à transparência, diz especialista

No apagar das luzes, Jair Bolsonaro sancionou uma lei que permite que a empresa pública do ramo faça parcerias com empresas privadas

Exploração de minérios nucleares terá participação de empresas privadas. Foto: Indústrias Nucleares do Brasil
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No apagar das luzes de seu governo, Jair Bolsonaro (PL) sancionou uma lei que autoriza a participação da iniciativa privada na mineração nuclear. O texto tem origem na Medida Provisória 1.133/2022, de autoria do próprio presidente, que entrou em vigor em agosto e foi apreciada no Congresso entre novembro e dezembro para ganhar status de lei.

O projeto altera o monopólio constitucional das Indústrias Nucleares do Brasil S/A, a INB, vinculada ao Ministério de Minas e Energia e fundada em 1988 para impulsionar a produção de energia nuclear no Brasil. Esse tipo de energia, que serve, por exemplo, para gerar eletricidade, é obtida principalmente pela extração do urânio. 

O Brasil possui uma das maiores reservas de urânio do mundo. A exploração desse minério no País ocorre no município de Caetité, município a 600 quilômetros de Salvador, na Bahia.

O urânio é extraído a partir de minas e submetido a outros procedimentos químicos e físicos, podendo ser, depois, utilizado em máquinas e equipamentos para a geração de energia.

Pesquisadores do campo da saúde já alertaram para os riscos à saúde decorrentes dessa atividade, tanto aos trabalhadores das minas como às comunidades do entorno, devido à radioatividade no material manipulado. 

A questão também é levantada por Talita Montezuma, professora de Direito da Universidade Federal Rural do Semi Árido, no Rio Grande do Norte e especialista em mineração. Em entrevista A CartaCapital, a pesquisadora destaca a dificuldade no acesso a informações quando a atividade se torna gerida pela iniciativa privada.

“É preocupante a dificuldade da sociedade civil em conhecer os dados do que está sendo extraído, como, quais são os riscos, quais os procedimentos de mitigação dos riscos em torno desses empreendimentos”, afirma a especialista.

Outro ponto ressaltado pela estudiosa é o amplo rol de atividades concedido pelo projeto de lei ao empresariado. De acordo com o texto, a INB “poderá firmar contratos com pessoas jurídicas e remunerá-las” nas seguintes atribuições:

  • A pesquisa, a lavra, o comércio de minérios nucleares e de seus concentrados, associados e derivados;
  • O tratamento de minérios nucleares e de seus associados e derivados;
  • O desenvolvimento de tecnologias para o aproveitamento de minérios nucleares e de seus associados e derivados;
  • A conversão, o enriquecimento, a reconversão, a produção e o comércio de materiais nucleares;
  • A produção e o comércio de outros equipamentos e materiais de interesse da energia nuclear;
  • A construção e a operação de instalações de tratamento, concentração e beneficiamento de minérios nucleares e de seus concentrados, associados e derivados;
  • A construção e a operação de instalações de industrialização, conversão e reconversão de material nuclear;
  • A construção e a operação de instalações destinadas ao enriquecimento de urânio, ao reprocessamento de elementos combustíveis irradiados e à produção de elementos combustíveis e de outros materiais de interesse do setor nuclear;
  • A negociação e a comercialização, nos mercados interno e externo, bens e serviços de seus interesse;
  • E o gerenciamento e o aproveitamento do recurso estratégico de minério nuclear.

A Unidade de Concentração de Urânio, em Caetité, na Bahia. Foto: Indústrias Nucleares do Brasil

Bolsonaro sancionou o texto com vetos, entre eles, o Artigo 10, que previa a necessidade de autorização pelo Ministério de Minas e Energia para as exportações de minérios nucleares, de concentrados e derivados, e de materiais nucleares. O então governo entendeu que a proposição, que partia do Legislativo, “poderia dificultar o exercício e a expansão da atividade de exploração no Brasil”. Além disso, argumentou que o dispositivo criaria “entraves burocráticos” e que poderia “desestimular o investimento privado”.

O Congresso ainda deve analisar os vetos de Bolsonaro e pode derrubá-los em uma sessão, mas ainda não há uma data prevista para isso. 

O projeto tem o apoio das empresas de mineração. Para a Associação Brasileira para o Desenvolvimento de Atividades Nucleares, a Abdan, entidade que congrega companhias do ramo, a medida vai “aumentar os investimentos na produção nacional de urânio”. A organização também argumenta que “não é função do Estado fazer as perfurações em busca do urânio” e que o certo é que o poder público controle o minério, o que está mantido. 

A discussão também se relaciona com a atuação da Agência Nacional de Mineração, órgão responsável pela fiscalização do setor. A equipe de trabalho de transição do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) constatou um quadro de pessoal antigo e pequeno, com defasagem salarial e recursos tecnológicos precários para exercer a função. 

Para Montezuma, essa é uma das principais críticas ao estado atual do órgão. Outra observação é de que a ANM deve ouvir mais os representantes do campo socioambiental, em vez de atender apenas o empresariado. 

O minério de urânio passa por procedimentos até poder ser aplicado. Foto: Indústrias Nucleares do Brasil

Confira os principais trechos da entrevista a seguir.

CartaCapital: Por que a mineração mineração nuclear é importante para o Estado brasileiro?

Talita Montezuma: Primeiro, porque temos um modelo econômico reprimarizado, ou seja, em grande medida, dependente da exportação de commodities. Em larga escala, os minérios vêm ocupando um espaço de destaque. Quando a gente fala de mineração de urânio, está falando de uma mineração muito específica, com riscos de agravo à saúde, por ser uma substância potencialmente cancerígena.

A gente pensa muito na energia nuclear, mas se esquece dos riscos associados à extração de urânio, como dispersão de poeira radioativa e de gás radônio, que se acumulam nas rochas e podem trazer efeitos sobre a saúde dos trabalhadores e das comunidades. Há estudos que apontam que o gás radônio alcançaria cerca de 1.000 quilômetros de distância. Então, o tema interessa à sociedade tanto do ponto de vista da saúde, como socioambiental e econômico. 

O urânio é um minério estratégico, que está no subsolo e pertence à União. Portanto, é um bem comum, de natureza pública. É preciso discutir a sua destinação. É o uso para desenvolver potencial armamentista? É para a energia nuclear? Para o desenvolvimento de ciência e tecnologia? Isso faz diferença quando pensamos em um modelo minerário.

CC: Existe algum risco da participação da iniciativa privada na mineração nuclear?

TM: Acredito que sim. O projeto de lei é extremamente amplo. Ele permite que a iniciativa privada atue sobre todo o rol de atribuições que hoje pertence às Indústrias Nucleares do Brasil, que é uma empresa pública. Então, para além da pesquisa e lavra desses minérios, o próprio tratamento desses minérios, o desenvolvimento tecnológico, o enriquecimento, a reconversão, a produção de equipamentos, a construção de instalações de beneficiamento e de industrialização do material nuclear, todas as atribuições estão abertas para o que seria essa parceria com a iniciativa privada. Temos um rol muito amplo estabelecido no Artigo 3º.

Em segundo lugar, mesmo lidando com uma empresa pública, nós temos uma dificuldade altíssima de acesso às informações, de termos ofícios respondidos, de conhecermos o projeto radiológico e as etapas do licenciamento nuclear. Imagina na medida em que isso for convertido para a iniciativa privada. É preocupante a dificuldade da sociedade civil em conhecer os dados do que está sendo extraído, como, quais são os riscos, quais os procedimentos de mitigação dos riscos em torno desses empreendimentos. Ou seja, não fica juridicamente bem estabelecido qual a natureza do contrato que será firmado, e também é preocupante do ponto de vista da transparência. 

CC: Como a senhora vê a atuação da Agência Nacional de Mineração e da Autoridade Nacional de Segurança Nuclear?

TM: De acordo com a redação que constava na Medida Provisória, ia ter uma mudança que conferiria atribuições para a ANM regular, autorizar e fazer o controle e fiscalização de atividades de pesquisa e lavra. Para isso, realmente existem algumas questões. Os concursos, o pessoal e a capacidade fiscalizatória do estado têm sido um gargalo nas agências, via de regra. Certamente, à medida que aumentam as suas atribuições, é preciso que seja ampliado o seu corpo técnico de trabalho. Outra crítica do campo socioambientalista para a ANM é que senta muito com o setor econômico e pouco com a sociedade civil. Há diversas parcerias firmadas a partir de demandas levadas pelos setores empresariais para a ANM, em termos de projetos de cooperação e de aceleração dos processos minerários. No ponto de vista socioambiental, são questões preocupantes e envolveriam um debate mais amplo, mas a ANM tem uma aproximação muito grande com o setor econômico. Isso chama a atenção. 

O então presidente Jair Bolsonaro (PL), ao lado do seu ministro de Minas e Energia, Adolfo Sachsida. Foto: Reprodução

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