Política

‘Antipolítica perdeu força nas eleições 2022’, afirmam pesquisadores

Para Gabriela Lotta e Pedro Abramovay, após crise de representatividade vista no Brasil a partir de 2013, discurso antissistema minguou, e importância da política voltou a nortear o debate eleitoral

Foto: Malu Delgado/DW
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É por meio de questões como patrimonialismo, meritocracia e politização do Judiciário que os pesquisadores Gabriela Lotta, cientista política e professora da Fundação Getúlio Vargas, e Pedro Abramovay, advogado e diretor para América Latina e Caribe da Open Society Foundation, dissecam o Estado brasileiro dos últimos anos no recém-lançado livro “A Democracia Equilibrista”.

No meio da narrativa, que se concentra principalmente no período entre as manifestações de 2013 e o governo de Jair Bolsonaro, a Operação Lava Jato ocupa, é claro, um papel importante – e criticado pelos pesquisadores.

“[Ela] mostra exatamente esse processo em que uma burocracia supostamente neutra, técnica, que está lá a partir de um concurso supostamente isonômico, está na verdade disputando interesses políticos, espaços políticos. Muitas vezes atravessando as leis”, afirma Lotta à DW.

“É um fenômeno muito parecido com quando a política atravessa a técnica. Você passa por cima da legalidade em nome de interesses que não são possíveis de serem equilibrados em uma disputa justa que faz parte da democracia”, diz.

Em A Democracia Equilibrista, Lotta e Abramovay mostram que a construção de um regime eficiente e saudável parte da relação e das tensões entre uma burocracia independente e as disputas naturais da democracia. Em outras palavras, uma balança com a técnica de um lado e a política de outro.

“A gente pressupõe um equilíbrio”, diz Lotta, ressaltando que se trata de algo “muito difícil e frágil, mas necessário”.

Por atacar sistematicamente as instituições, do Supremo Tribunal Federal (STF) às urnas eletrônicas, Bolsonaro é visto pelos autores como um exemplo que, como enfatiza Lotta, “acaba comprometendo o funcionamento da democracia”.

Para a pesquisadora, nas eleições de 2022 vê-se o discurso antipolítica e antissistema perder força e “a volta da política como um elemento norteador de nosso debate eleitoral, o que é muito positivo para o funcionamento da democracia”.

DW: Quando um presidente age vilipendiando as instituições, ele coloca o pilar democrático em risco?

Gabriela Lotta: Para o bom funcionamento da democracia, a gente pressupõe construir um equilíbrio, que é muito difícil e frágil, mas é necessário, entre o domínio da burocracia, da técnica, e domínio da política. Essa relação é sempre conflituosa, isso é da sua natureza, mas quando ela não consegue ser ajustada, quando não conseguimos ter controles mútuos de ambas as partes, isso acaba comprometendo o funcionamento da democracia, levando a regimes autoritários.

O caso do Bolsonaro é um que tem mostrado bem o desequilíbrio nesse conflito, que tende a ir muito mais para o lado da política, desconsiderando a importância da técnica. Na pandemia, isso foi evidente. A pandemia mostrou para a gente um presidente que passou por cima de qualquer tipo de conhecimento científico, das capacidades técnicas, da burocracia, atacando a própria burocracia, e isso comprometeu nossa capacidade de enfrentamento da pandemia.

Temos visto isso de maneira sistemática no governo Bolsonaro. O governo tem atacado as instituições burocráticas que, de alguma forma, colocam uma barreira ao seu projeto de desmonte. Qualquer tipo de barreira que Bolsonaro veja para o cumprimento de sua agenda, ele resolve atacando a burocracia, passando por cima dela. Temos visto isso na área ambiental, na educação…

[Ele é] um presidente que desconsidera o conhecimento burocrático, atropela a burocracia e, com isso, acaba comprometendo o funcionamento da democracia, porque a gente perde a capacidade de ter controles, legalidades, de garantir procedimentos com isonomia, com impessoalidade, que são as características básicas do funcionamento da burocracia. Temos vivido nesse momento um desequilíbrio muito grande entre as duas partes.

DW: Quando há o predomínio da técnica, da burocracia, também há risco?

O desequilíbrio técnico também é bastante autoritário, embora possa parecer, para a sociedade, virtuoso, porque nele se ressalta em geral o conhecimento técnico-científico, a meritocracia. Mas, na verdade, ele esconde por trás de si um autoritarismo técnico, o nome disso é tecnocracia, onde a política parece não existir. A técnica também não é neutra, os burocratas quando entram no governo e defendem certos interesses, corporativos ou de uma parcela da sociedade, continuam atuando politicamente sob um manto suposto da neutralidade técnica. Isso é tão autoritário quanto governos que assumem a política autoritária. Mas é um autoritarismo técnico que, supostamente, parece mais bonito. Mas não é. Ele é tão autoritário quanto outros tipos de autoritarismos.

Isso aconteceu nas eleições passadas com o discurso do “sou gestor, não sou político”, e isso acontece politicamente dentro de instituições no Brasil que são travestidas com esse manto da superioridade técnica, […] por servidores que passaram por concursos concorridos e que entram no Estado achando que têm uma superioridade. Há exemplos do que ocorre em muitos ministérios públicos, tribunais de contas e mesmo algumas áreas dentro do Estado, com burocratas se colocando contrários à decisão política de quem foi aprovado pelo voto. Isso é muito diferente, como ocorre com Bolsonaro, de quando burocratas estão defendendo a lei, o cumprimento de uma legalidade que o político quer desconsiderar.

DW: No livro, vocês situam momentos em que a própria técnica tem seus pilares desrespeitados, colocando aí a Operação Lava Jato…

O caso da Lava Jato é um em que você tem pessoas dentro do Estado, que passaram em concurso, e que atropelam a dimensão da política e a própria legalidade para poder fazer valer seus interesses, que ao longo do tempo foram se mostrando inclusive interesses políticos de maneira clara e evidente, com esses mesmos atores saindo do mundo da burocracia, dos seus cargos concursados, para disputarem o mundo da política partidária. A Lava Jato mostra exatamente esse processo em que uma burocracia supostamente neutra, técnica, que está lá a partir de um concurso supostamente isonômico, está na verdade disputando interesses políticos, espaços políticos. Muitas vezes atravessando as leis. É um fenômeno muito parecido com quando a política atravessa a técnica. Você passa por cima da legalidade em nome de interesses que não são possíveis de serem equilibrados em uma disputa justa que faz parte da democracia.

DW: Nos últimos anos, um movimento de discurso negacionista da própria política tomou corpo no Brasil, com o lema de que “o país precisa de gestores e não de políticos”. Essa ideia ainda cola nos políticos?

Foi um discurso que orientou e organizou muito as eleições passadas, por uma negação da política, uma crise de representatividade que o Brasil teve desde meados de 2013. Isso acabou fazendo crescer o discurso de que uma suposta meritocracia seria melhor do que a democracia e a própria política. O [ex-governador de São Paulo, João] Doria é fruto disso, vários eleitos como deputados e governadores também vieram dessa pauta. O Bolsonaro não foi esse fenômeno. Ele estava na tônica de “não faço parte do sistema”. Sua política é muito mais antissistema do que antipolítica, e é muito difícil sustentar esse argumento ao longo do tempo, porque ele começa a atuar com o Centrão, negociar com o Congresso. O caso dele é diferente do caso do Doria, mas os dois vêm nessa onda, desde meados de 2013, de um discurso antipolítico, de negação da política, que nos levou a uma total fragilidade institucional.

DW: Como a sociedade civil pode agir para que a nossa “democracia equilibrista” não deixe de “parar em pé”?

Em primeiro lugar, a gente não negar a política. Tem um papel importante que a sociedade tem cumprido nos últimos anos que é ajudar a fortalecer candidaturas, inclusive representando minorias ou grupos excluídos historicamente das política. A sociedade civil precisa assumir, e isso não tenho visto tão forte ainda, a importância de fortalecer o Estado por dentro, a administração, nossas instituições. O governo Bolsonaro mostrou uma fragilidade institucional do Estado que não achávamos que existisse. Achávamos que a Constituição [de 1988] tinha conseguido construir uma burocracia mais forte do que a que a gente encontrou enfrentando Bolsonaro. Nossa burocracia foi atacada de maneira muito rápida. Vimos ocorrer no Plano Nacional de Imunização, na área indígena, nos direitos humanos… Uma burocracia que foi muito atacada e fragilizada pelo governo. A sociedade civil precisa, daqui para a frente, ajudar a fortalecer nossa burocracia, com um discurso que não seja anti-Estado.

DW: De que forma as eleições deste ano são importantes para isso?

Estas eleições já foram vitoriosas no sentido de trazer a política de maneira central para o debate. Temos visto muito menos candidaturas antissistema ou antipolíticas, muito menos candidatos se colocando como gestor e não político, esse discurso não está colando mais tanto. E temos visto a ascensão de coalizões e frentes amplas pró-democracia, que resgatam a importância da política.

Nesse sentido, estas eleições já mostram a volta da política como um elemento norteador de nosso debate eleitoral, o que é muito positivo para o funcionamento da democracia. Temos já um ganho de trazer de novo a importância da política, com P maiúsculo. Não a política puramente partidária, nem a politicagem. Mas a política enquanto debate, enquanto construção coletiva.

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