Política

O tamanho da responsabilidade da PM-DF na invasão terrorista em Brasília

Especialistas ouvidos por CartaCapital avaliam a postura do comando da Polícia Militar do DF e como isso pode ter agravado o cenário visto no dia 8

Foto: AFP
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Passadas quase duas semanas do ataque extremista aos Três Poderes, em Brasília, as autoridades se concentram na responsabilização de participantes, financiadores e encorajadores do caos golpista.

Também restam dúvidas sobre a ação da Polícia Militar do Distrito Federal — que está sendo investigada pelo Ministério Público Federal por possibilitar ou facilitar a entrada dos terroristas. 

Ainda no dia dos ataques, 8 de janeiro, viralizaram nas redes, imagens de PMs escoltando, conversando e até posando para fotos com invasores – enquanto o Palácio do Planalto, o Congresso e o STF eram depredados. 

Entre os invasores investigados ou detidos, ao menos 18 são militares, agentes da ativa e da reserva, das polícias militares, dos corpos de bombeiros e das Forças Armadas.

Para Fabio de Sá e Silva, professor de Estudos Brasileiros na Universidade de Oklahoma (EUA), as cenas mostram uma inversão do trabalho dos agentes.

“Policiais são numerosos e armados, eles são um instrumento do estado para defesa do status quo –– e não agentes da subversão do status quo”, infere o pesquisador de Justiça, segurança pública e crise democrática. “Quando cruzam essa linha, já não estamos mais falando de uma ordem democrática. Estamos à beira de uma insurreição ou revolução, no caso, conservadora, mas não mais de democracia”.

Também compartilha desta tese o professor da FGV e integrante do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Rafael Alcadipani. “A gente precisa de uma polícia que seja profissional, que não tenha influência em ingerência política, não seja submetida a ideologias estranhas à sua atuação”, disse ele em entrevista a CartaCapital.

A gravidade do cenário fez o Supremo afastar o governador Ibaneis Rocha, que agora tenta ao máximo se desvincular do ex-secretário detido, Anderson Torres, para garantir seu retorno ao posto. 

Torres só deve depor no dia 2 de fevereiro. Enquanto isso, o Judiciário segue agindo para tentar conter a ameaça de um novo avanço da onda golpista. Pode não ser, contudo, o suficiente.

“Não é um juiz, sozinho, bloqueando perfis de internet, que será capaz disso; inclusive temos que tirar esse peso dos ombros dele. É um esforço coletivo e de grandes proporções; vai levar a próxima geração inteira”, pontua Sá e Silva.

Leia a entrevista com os pesquisadores a seguir:

CartaCapital: Qual a leitura vocês fazem da condução da PM no 8 de janeiro?

Fábio de Sá e Silva: 

Há um pouco de cada coisa; sabemos que muitos policiais no Brasil tem simpatia pelo bolsonarismo e estão eles próprios radicalizados; parece evidente também que o comando, conscientemente ou de forma omissa, não instruiu a tropa a dar a resposta devida––isso só aconteceu quando estavam sob a batuta do interventor. Isso tudo é uma pena, porque a polícia acaba, também, sendo vítima. Vários deles apanharam dos invasores.

Rafael Alcadipani:  Eu acho que houve uma omissão houve uma uma desarticulação das forças de segurança, que eu acho que tem sim uma tem duas dimensões: uma dimensão ideológica e de ter uma certa aceitação a esse tipo de manifestante e uma dimensão operacional de incompetência mesmo. Porque existiu ali além de uma questão ideológica, é a prova cabal da incompetência da articulação entre as polícias de prever, dos batalhões do Exército que tinham que proteger o Palácio do Planalto não terem conseguido proteger, das polícias legislativas não terem conseguido proteger. Então acho que junta duas coisas: uma questão que é a de ideologia e uma segunda questão que é a incompetência na forma de atuar. 

CC: Que elementos na estrutura da PM podem explicar a falta de atuação da PM nas invasões de domingo? Para além da associação ideológica ao bolsonarismo…

F.S: A literatura há tempos chama a atenção para aspectos da cultura organizacional e formação, especialmente de organizações militares [no caso da PM], que favorecem a cooptação por movimentos autoritários. Por isso, inclusive, é que se fala em desmilitarização. No caso do Brasil, tudo isso fica ainda mais complicado, dado o papel que as polícias desempenharam na repressão, durante os anos de chumbo – aí não só as militares, mas também as civis) 

Acho que essa abordagem ajuda a explicar um pouco, até porque Bolsonaro fez muito pouco pelas polícias –não criou, por exemplo, um piso salarial, no máximo fez um programa de crédito. O que ele valorizou foi a estética e a retórica de heroísmo, então presumo que isso deva ter alguma ressonância, sim.

E parece haver algum benefício material para policiais nas políticas armamentistas adotadas por Bolsonaro, muitos deles viraram instrutores ou mesmo sócios de clubes de tiro, em paralelo à atividade policial. Então, também pode haver esse tipo de incentivo.

R.A:  Faltou comando. Parece que o comando se omitiu, que não estava organizado e que não houve um planejamento adequado para o tipo de manifestação que se avizinhava, não se levou a sério a inteligência que estava colocada. Eu acho que são essas as questões e também o fato da ideologia, de acompanhar os manifestantes da forma que foi acompanhada, não ter estruturado uma força que fosse capaz de segurar a situação. 

CC: Ainda a respeito da cultura organizacional, figuras importantes do movimento negro questionaram a diferença na ostensividade da polícia na invasão de domingo com as operações em favelas, como a do Jacarezinho.

F.S: Isso tem a ver com as relações de poder nas quais os policiais estão envolvidos. Por um lado, como autoridades, é fácil para eles subjugarem os mais vulneráveis (pretos e pobres). Por outro lado, como também são negros e com status socioeconômico menos favorecido em relação, por exemplo, a brancos e cidadãos de classe média, acabam sendo subjugados nessas relações. 

Estereótipos também entram em cena. Mas tudo isso ocorre de maneira subliminar, não é que haja uma decisão consciente e antecipada de bater ou não segundo a cor da pele.

R.A: O questionamento do movimento negro é completamente apropriado. A gente tem uma cultura e uma lógica policial de que a polícia aqui não é uma defensora das leis, mas ela é defensora de uma classe social, de um grupo social justamente que são os ricos.

Então na hora em que esses ricos estão fazendo manifestação, na hora que esses ricos e brancos estão quebrando a ordem, depredando o Estado, a polícia não age com o mesmo rigor porque ela historicamente está estruturada para defender um tipo de classe social, para defender em termos de lógica evidentemente e não de atuação formal, mas ação informal, ela foi constituída para defender uma certa classe social e quando essa classe social se manifesta, ela se comporta de uma forma diferente.

CC: A responsabilização individual dos agentes será o suficiente para conter avanços do extremismo? 

F.S: Por princípio sou cético quanto à ideia de que punição individual resolva qualquer problema, inclusive esse [do avanço do extremismo]. É preciso muito mais que isso, embora, no momento, seja necessário investigar e responsabilizar policiais omissos, coniventes, ou mesmo que participaram do quebra-quebra. Chamo a atenção para a necessidade de lideranças comprometidas com a democracia e que transmitam, para a base, o recado de que as polícias devem se subordinar à lei e aos governantes eleitos.

R.A: A responsabilização individual e a responsabilização dos comandos é importante porque isso mostra que tem limite e que eles têm que ser responsabilizados individualmente. A própria prisão do comandante da Polícia Militar do Distrito Federal são ações importantes para se perceber que a lei tem que ser respeitada. Agora precisa de uma mudança de mentalidade, de uma mudança de lógica de atuação. A polícia militar tem que se ver como uma guardiã da lei, não interessa para quem.

CC: A radicalização de policiais e militares pode vir a ser um risco para o governo Lula? 

F.S: Mais que para um governo Lula, é um risco para a democracia. Policiais são numerosos e armados, eles são um instrumento do estado para defesa do status quo––e não agentes da subversão do status quo. Quando cruzam essa linha, já não estamos mais falando de uma ordem democrática. Estamos à beira de uma insurreição ou revolução, no caso, conservadora, mas não mais de democracia.

R.A: Não vejo como um risco ao governo Lula, o que pode acontecer uma vez ou outra é algum tipo de omissão em manifestações parecidas como o que aconteceu em Brasília, mas eu não vejo a Polícia Militar se organizando e se estruturando para atacar o governo ou coisas assim.

Por outro lado, eu acredito que é preciso que a gente tenha uma despolitização das polícias e não apenas no que diz respeito ao bolsonarismo. A gente também tem uma dimensão bastante forte de influência política, de governantes, de deputados estaduais fazendo loteamento de cargos nas polícias e coisas do gênero, isso precisa ser combatido.

CC: O que é importante ser feito, se tratando de segurança pública, para combater esses grupos terroristas?

F.S: O mundo todo se debate com essa questão hoje em dia. Essa radicalização é multicausal. Está ligada a fatores demográficos, ao advento das redes sociais e plataformas de conteúdo digital, ao aumento da desigualdade, a disputas por status, são muitas coisas. 

No Brasil, há algumas razões específicas ligadas ao militarismo, intolerâncias religiosas, irresponsabilidade de empresas de mídia que deram voz e espaço a extremistas, e até mesmo a descredibilização de instituições no seio da luta anticorrupção. Tudo o que sei é que não é um juiz, sozinho, bloqueando perfis de internet, que será capaz disso; inclusive temos que tirar esse peso dos ombros dele. É um esforço coletivo e de grandes proporções; vai levar a próxima geração inteira.

R.A: Você tem que investigar e tentar prever as ações. Em Brasília, parece que houve essa previsão de ação, só que a polícia não se organizou da forma adequada. Então o ponto central para mim é você se organizar, investigar, prever e ter efetivo correspondente na hora em que você tem ações desse jeito. 

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