Diversidade

Quilombo Saracura: A luta pela preservação das memórias encontradas nas obras do metrô em SP

Autoridades permitiram o início das escavações sem avaliação arqueológica da área. Ainda não há destino para as peças encontradas lá

Poeta Rubens Fernandes de Souza, 83, conhecido como Rubão Guerreiro da Nação, quilombola morador do Bixiga (SP) — Foto: Thiago Fernandes/Reprodução - Instagram Mobilização Estação Saracura/Vai-Vai
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O local onde hoje será construída a estação 14-Bis, da nova linha 6 do metrô em São Paulo, foi seio da formação de um dos principais quilombos da capital.

Entre o século XIX e início do século XX, o Quilombo Saracura foi o lar de escravizados que escapavam das fazendas ou de feiras realizadas no Vale do Anhangabaú, onde eram colocados à venda. Foi nesse território que surgiu, em 1930, o cordão carnavalesco Vae-Vae, que deu origem à tradicional escola de samba Vai-Vai. 

Há quase um ano, mais de 153 entidades criaram o movimento Mobiliza Saracuraem busca de soluções para a proteção do patrimônio histórico descoberto no entorno. 

A mobilização começou em junho de 2022, depois que a concessionária LinhaUni, responsável pela construção da estação, encontrou nas escavações centenas de objetos, que os antropólogos afirmam pertencer aos quilombolas. Até o momento, mais de 700 itens foram catalogados – a maioria de uso cotidiana, como louças, cerâmicas e vestuário.

O cerne do problema é que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan-SP), quando autorizou a concessão da área, dispensou os estudos arqueológicos, atendendo a um pedido da empreiteira. O que colocou em risco a preservação dos itens pertencentes ao quilombo urbano – o que, para o movimento, representa um apagamento da história negra local.  

No ofício, assinado pelo então presidente do consórcio, Raul Ribeiro Pereira Neto, o argumento era de que se tratavam de regiões “já impactadas pelo processo de urbanização”. Apesar de um estudo de impacto ambiental, realizado em 2014 pelo próprio Iphan, ter apontado a sede da Vai-Vai como um imóvel de possível interesse histórico e cultural. 

Foto: IPHAN/Reprodução

Por este motivo, o movimento Mobiliza Saracura entrou com ação no Ministério Público Federal questionando o licenciamento para a estação. Em outro inquérito, também cobra perícia judicial para avaliar as condições do local.

“Não podemos permitir que nossa história seja mais uma vez escondida”, defendem. “É hora de devolver às gerações de descendentes negros do bairro seus direitos à memória, à terra e à presença neste solo.”

O grupo também exige a criação de um projeto de preservação do sítio arqueológico com a construção de um memorial e a mudança do nome da estação para Saracura Vai-Vai.

Desde então, o movimento protagoniza atos, audiências públicas, e em reuniões, como a realizada com o ministro dos Direitos Humanos, Silvio Almeida e com o presidente da Fundação Palmares, João Jorge. 

Apesar disso, as obras só foram, de fato, paralisadas em fevereiro deste ano, em razão das chuvas na região — sete meses depois da concessionária alertar sobre os itens do sítio arqueológico.

Inicialmente, o Iphan deu o aval para o resgate das peças, mas manteve a continuidade das escavações. Num parecer posterior, porém, após a perícia, decidiu manter paralisada as escavações na estação “até avaliação especializada multidisciplinar.”

Em maio deste ano, o MPF também atendeu a um dos pedidos do Mobiliza Saracura e dois peritos realizaram uma vistoria no local. A expectativa é de que o relatório, ainda não divulgado, esclareça se a falta de avaliações prévias do Iphan prejudicou a preservação dos vestígios do quilombo.

“O patrimônio cultural e arqueológico é um território de disputa”, diz Rossano Lopes Bastos, ex-servidor do Iphan e membro da Rede de Arqueologia Negra e do Conselho Internacional dos Monumentos e Sítios da Unesco. “Um território onde se mostra as memórias que se querem sejam lembradas.”

O sítio arqueológico 

As louças, cerâmicas, solados de sapato encontrados entre as ruas Dr. Lourenço Granato e Manoel Dutra ajudam a montar o quadro da história do primeiro quilombo urbano reconhecido em São Paulo.

“A profundidade dos vestígios parece aproximá-los dos períodos em que o Córrego Saracura ainda corria a céu aberto e aquilombados viviam à sua margem”, diz um dos relatórios parciais enviado pela A Lasca Arqueologia ao Iphan.  

Os vidros encontrados são, em sua maioria, frascos de medicamentos, garrafas de vinho e cerveja. A partir das bases e dos gargalos das linhas de produção, foi possível identificar que os itens foram produzidos em máquinas automáticas, introduzidas no País no fim do século XIX.

Já as garrafas de medicamentos identificados como três frascos de leite de magnésia são da marca Phillips, popular a partir dos anos 1940.

Outro vidro com a inscrição Vick, estima-se ser dos xaropes da marca produzidos a partir dos anos 1930. O último, com a inscrição da Wheaton, era usado para comercializar penicilina nos anos 1950.

As louças coletadas no sítio são de objetos domésticos, como pratos, xícaras, pires e tigelas, do tipo faiança fina e porcelana. 

Em parte das peças foi possível identificar as logomarcas dos fabricantes: Indústrias Reunidas Francisco Matarazzo e Indústrias Francisco Pozzani, ambas marcas nacionais. A maioria dos itens com pinturas à mão livre.

“A existência de logomarcas unicamente nacionais e de louças com padrões formais e decorativos mais simples pode apontar para um contexto de grupos sociais com menor poder aquisitivo, situação esta compatível com o contexto de ocupação do vale do córrego Saracura e do Bixiga como um todo no início do século 20”, salienta a avaliação.

Apenas dois fragmentos de cerâmica foram encontrados no sítio. Uma possível borda de vaso para plantas e um item cônico “que provavelmente seria parte de algum objeto ornamental ou um suporte de vaso”. Nesse sentido, o relatório relembra que o uso do material tinha perdido espaço com a industrialização e difusão das louças nacionais.

Outros achados incluem oito fragmentos de ossos, de aves, bovinos e um possível suíno, avaliados como provável descarte de alimentação humana. 

Também foram achados solas e saltos de sapatos. O que “indica a possibilidade de se encontrar no resgate arqueológico ainda outros elementos materiais que tragam a memória desses antigos artesãos e artesãs, que representam uma parcela da população com padrões de vida mais simples, inseridos nos circuitos de oficinas, ofícios e fábricas e que formaram a base do desenvolvimento econômico da capital paulista”.

A partir disso, os arqueólogos estimam que os “objetos tenham sido descartados em lixeiras próximas às antigas residências do quilombo, em um período em que a sua formação original já tivesse vivenciado modificações, com a ocupação se espalhando além do fundo de vale para as vertentes do córrego Saracura; assim, crescia a população do bairro, em muito formada pelos descendentes dos aquilombados”, explica o relatório.

Os pesquisadores ainda esperam encontrar materiais de outros momentos históricos, como do início das atividades do então cordão Vai-Vai na região, itens das religiões de matriz africana e da formação do Quilombo Saracura, no século 19. 

Apesar dos achados arqueológicos estarem sendo retirados do local, ainda não é certo para onde eles serão direcionados depois da pesquisa. 

Diante disso, o movimento luta também para conseguir um memorial permanente junto à Prefeitura de São Paulo, que está prestes a aprovar a revisão do Plano Diretor do Município. 

“Apresentamos três emendas inéditas buscando a preservação do patrimônio, memórias e áreas tombadas para toda a cidade e uma específica para o Bixiga”, conta Gisele Brito, coordenadora de Direito a Cidades Antirracistas e do Instituto de Referência Negra Peregum, que integra a mobilização. “O Plano Diretor deve ter a preocupação da construção de uma cidade antirracista e não apenas seguir a lógica do lucro, da especulação”. 

A história do primeiro quilombo paulistano

Os historiadores acreditam que o Quilombo Saracura, também chamado no passado de ‘Pequena África’, foi inicialmente usado como ponto de descanso na rota de fuga e posteriormente como moradia permanente. As casas estendiam-se ao longo do córrego Saracura, um afluente do rio Anhangabaú, hoje canalizado.

Foi nesse território que surgiu, em 1930, o cordão carnavalesco Vae-Vae, que deu origem à tradicional escola de samba Vai-Vai. 

“A região do Quilombo Saracura foi um dos berços paulistanos do samba de bumbo e do batuque. O samba de roda em um primeiro momento e depois os cordões carnavalescos, eram práticas culturais que se tornaram expressões da negritude paulistana no século XIX e início do XX”, relata o antropólogo Alessandro Luís Lopes de Lima. 

As religiões de matriz africana, por consequência, também têm raízes fincadas no bairro. Ali era “onde descendentes de escravizados, apartados da festa da elite e das celebrações na igreja matriz, promoviam batuques, rezas e rituais”, explica ainda a mestre em Ciências da Religião, Claudia Alexandre. 

Diante de tanta história, o movimento Mobiliza Saracura ressalta em seu manifesto o quanto “a permanência do sítio arqueológico no seio de sua comunidade é fundamental para que o processo educativo seja efetivo”. 

Cita, como exemplo a manutenção dos achados no exato lugar da descoberta do Cais do Valongo no Rio de Janeiro, redescoberto em 2011 durante as obras de reforma da região portuária. O que mostrou ser “possível aplicação de técnicas que preservem os achados, sem impedir a construção do metrô”.

No relatório, a empresa do consórcio também sinaliza que “o resgate da área definida poderá trazer informações e materiais muito relevantes para a história de ocupação do Bixiga, a presença do Quilombo da Saracura e dos descendentes de seus antigos moradores que, de outra forma, não teriam visibilidade. Ao passo que uma porção do sítio será resgatada para gerar conhecimento sobre esse passado, outros testemunhos seguirão preservados sob as ruas que se expandem para o restante do Bixiga”. 

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