Esther Solano

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Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Complutense de Madri e professora de Relações Internacionais da Unifesp

Opinião

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A conciliação vai prevalecer?

Bolsonaro e sua família devem ser julgados com todo o peso da lei. Nem mais nem menos. Odiar um país, tentar destruí-lo, não pode sair de graça

Foto: TÉRCIO TEIXEIRA / AFP
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Nestes dias circulou intensamente nas redes sociais uma imagem que redefine, em todo seu esplendor, o significado de patético. Aliás, a partir de hoje nem precisa mais definir o conceito. Sempre que for necessário utilizá-lo, basta mostrá-la, ficará mais que evidente o que queremos expressar. A composição de fotos virou um ícone artístico-linguístico sobre a realidade do bolsonarismo mais histérico em toda a sua crueza: de um lado bolsonaristas delirantes na frente dos quartéis, em posição de martírio, a se oferecer em sacrifício cristão em prol da nação, patriotas na luta do Bem contra o Mal, capazes de se entregar em holocausto pelo bem do País amado, homens e mulheres em atitude de histeria coletiva em defesa da bandeira brasileira, custe o que custar, colocando a vida e a honra nas mãos de Deus. Do outro lado, Eduardo Bolsonaro a curtir a Copa do Mundo no Catar, absolutamente se lixando para os abnegados patriotas. Uns na “sofrença”, o outro na farra. Uns a lutar heroicamente por um Brasil que caiu nas garras diabólicas do comunismo, o outro na bacanal futebolística do outro lado do planeta. Patéticos.

Sim, confesso que senti prazer ao ver a imagem. Benfeito, foi o meu primeiro pensamento. Os idiotas golpistas merecem ser esculachados. Merecem o desprezo até dos seus próprios líderes, outros idiotas golpistas, mas um pouco mais inteligentes, ao menos suficientemente inteligentes para deixar outros se sacrificarem, enquanto buscam uma saída e tiram o deles da reta. A família Bolsonaro nunca esteve disposta ao sacrifício. O sacrifício é para o baixo clero dos idiotas golpistas. Sim, senti um prazer inicial, mas incompleto, pois a foto me pareceu imensamente premonitória. Eduardo Bolsonaro rindo, descontraído, relaxado, parecia uma predição de um futuro no qual a família Bolsonaro talvez poderá rir, descontraída, relaxada, sem ser punida por nenhum de seus numerosos crimes. E isso dói, muito.

O Brasil cordial de novo.

O Brasil conciliador de novo.

O Brasil que joga o ódio para baixo do tapete.

Bolsonaro e sua família devem ser julgados com todo o peso da lei. Nem mais nem menos. Devem ser julgados pela destruição, pelo horror, porque o horror cometido tem forma e letra nos códigos. Não podemos deixar o ódio impune. Não podemos deixar o golpismo impune. Qual será a pedagogia do período Bolsonaro se o clã for anistiado? É possível ser golpista, é possível destruir um país, é de graça, podem fazê-lo à vontade, sintam-se motivados para acabar com as instituições, é possível odiar ostensivamente, façam-no, não custa nada.

Não podemos escolher a conciliação quando se trata de ódio. O ódio não tratado corretamente sempre emerge de novo e emerge empoderado, feroz. O ódio jogado para debaixo do tapete, garras escondidas na escuridão, latente, encoberto, na surdina, sempre estará pronto para saltar à luz quando houver um mínimo espaço, para devorar, machucar, ferir de novo.

“Ah, vá, Bolsonaro nem foi tão ruim assim”, “Ele não deu um golpe, deu?”, “E se ele for julgado agora vai dividir o País de novo, vai ser guerra civil”, “Vamos curtir a Copa do Mundo, as férias, aí depois o Lula toma posse e a gente vira a página”, “Não vamos mexer nisso, vai ser pior”.

Argumentos não faltam. O Brasil cordial tem uma infinidade deles. Mas todos se erguem sobre a mesma falácia: o ódio não vira a página. Sim, claro, muitas vezes, na vida, na política, conciliar é muito melhor do que ir à guerra, a negociação é com certeza preferível ao campo de batalha, mas o ódio, não, com o ódio não se negocia, não se concilia, não se esquece, não se perdoa, não se poupa, não se esconde. O ódio não tratado não morre, continua vivo, aguardando outra oportunidade, espalhando a sua purulência, corroendo qualquer possibilidade de uma sociedade saudável que olha para o futuro coletivamente. Sem combater o ódio não há “nós”.

A história brasileira da conciliação é um desastre. A conciliação dos escravocratas teve como herança um dos países mais racistas do mundo. A conciliação da ditadura teve como herança Forças Armadas despudoradamente antidemocráticas. O Brasil cordial vai se impor de novo? O Brasil cordial vai tentar esquecer um dos períodos mais vergonhosos de sua história recente?

Que a lei se imponha.

Odiar um país, tentar destruí-lo, não pode sair de graça.

O ódio não vira a página. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1237 DE CARTACAPITAL, EM 7 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A conciliação vai prevalecer?”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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