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Opinião

Rituais de exibicionismo: por mais ciências humanas nos currículos

No centro das perversões sociais estão as humilhações, muitas delas de cunho sexual. A exposição de partes íntimas de alunos de medicina da Unisa não se resume a estes capítulos

Alunos da Unisa tocam partes íntimas simulando masturbação em jogo de Futsal feminino. Foto: Reprodução
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Por José Isaías Venera*

O psicanalista Jacques Lacan tem uma frase reveladora: “É pelo gozo do Outro que o exibicionista zela”. Uma das formas de interpretar essa frase é que o exibicionista mostra o que supostamente tem — já que o falo que interessa à psicanálise é simbólico —, levando o outro à vergonha daquilo que lhe falta (supostamente, o falo). Podemos transpor essa conjectura para os rituais de crueldade que estruturam nossa cultura, mobilizados pelas hierarquias que pressupõem a valorização de uns sobre os outros: racismo, sexismo, xenofobia etc.

De um lado, há aqueles que pressupõem ter a raça superior, o gênero superior, ou pertencer ao país superior. Superior sugere estar acima. Como observou Kabengele Munanga, a classificação faz parte do desenvolvimento das ciências, mas, ao hierarquizar e estabelecer uma escala de valorização, abriu caminho para o racialismo moderno. 

Acertadamente, vários pensadores, entre eles Theodor Adorno, constataram que a modernidade — leia-se: a ciência e a razão como meios para aumentar o grau de civilidade — não se opõe à barbárie, mas é sua reprodução pela própria civilização. Se Adorno mirava sobretudo experiências do fascismo e do nazismo, não obstante sua crítica se voltava também à racionalidade técnica dominante entre as democracias liberais. 

Hierarquia e crueldade

A desigualdade social estrutura a violência, hierarquiza e determina lugar aos desiguais. A violência estruturada expressa-se diariamente em ato, mas também nas formas de representação. Está nos telejornais, que naturalizam a necropolítica praticada pelas forças ostensivas do Estado nas periferias das cidades, nos enredos das telenovelas, nos rituais de punição dos reality shows, ou nas fake news que fomentam ódio contra grupos.

No centro das perversões sociais estão as humilhações, muitas delas de cunho sexual. A exposição de partes íntimas de alunos de medicina da Universidade Santo Amaro (Unisa) em uma partida feminina de vôlei, em abril, não se resume a um capítulo do exibicionismo ou de rituais de humilhação nos chamados trotes.

O que se sabe é que uma caixa de pandora se abriu liberando vídeos pelas redes sociais com os mais bizarros casos de crueldade a que os veteranos submetem os novatos

Em matéria de O Globo, “Além da ‘masturbação coletiva’”, de 20 de setembro, alunos do curso da Unisa relataram ao jornal que “o clima de terror psicológico predomina desde os primeiros anos de faculdade, embasado pelo lema ‘hierarquia, raça e tradição’ — que prega obediência e respeito aos veteranos da faculdade”. Não teríamos aqui elementos que estruturam a reprodução da crueldade em um currículo informal que opera no ambiente da universidade?

Hierarquia determina quem tem maior valor na estrutura. Já raça se remete à supremacia (mesmo que no contexto queira dizer força), e tradição reforça que os dois enunciados anteriores vêm de longa duração. Não à toa, em um país desigual, expressões dessa natureza estão mais presentes entre alunos de cursos que remontam à tradição da elite econômica do país. 

Quais corpos ocupavam o centro da cena?

À primeira vista, o evento na partida de vôlei consistia no desejo de chocar as observadoras, mas de quais corpos estamos falando? Quais corpos ocupavam o centro da cena antes do exibicionismo coletivo? Não é de hoje que o corpo das jogadoras de vôlei ganha visibilidade nas redes sociais. Há aí a fantasia da supremacia do macho sobre o corpo feminino, mesmo que no exibicionismo coletivo se podia ver, eventualmente, a presença também de mulheres – não há limites para os processos de assujeitamentos. Há ainda a intercessão de classe social — são alunos de medicina de uma universidade do setor privado. Inevitavelmente, somos lançados à fantasia da supremacia do macho rico.  

Punir os envolvidos após a viralização do vídeo no domingo (17) deste mês é apenas um efeito placebo. Estamos diante da reprodução da violência simbólica (gênero e classe) que mina o cotidiano da vida. Em uma pesquisa rápida em um buscador da internet, encontramos várias matérias envolvendo alunos, muitos deles de medicina, em que homens baixam as calças e simulam com as mãos o órgão genital feminino.

Quando o ministro da Educação Camilo Santana diz que “não podemos imaginar um jovem estudante de medicina com esse tipo de atitude”, deveríamos nos perguntar: o que fazer para mudar a subordinação da educação às exigências de mercado e, assim, promover uma formação mais humanizada? Subordinação ao mercado, porque na lógica neoliberal o cliente é Deus e Deus está acima da lei. Ou, para usar a lógica psicanalítica, Deus é o pai da horda primeva, ou seja, é aquele que tudo pode. 

Das quadras às telas

O exibicionismo nas quadras era uma bola, ou melhor, um balão de ensaio para o enquadramento nas telas. Muitas das ações físicas inevitavelmente ganham vida digital. A viralização das filmagens nas redes sociais multiplica os falos e toca o coração de um traço do voyeurismo dos internautas. Desejo de mostrar a intimidade — exibicionismo — e desejo de ver a intimidade do outro — voyeurismo. Um par que engaja nas redes sociais.

Na estrutura perversa, o exibicionismo não faz par com o voyeurismo, mas enquanto traço do neurótico a operação gera engajamento e torna-se mercadoria na vida dataficada (tradução da vida em dados digitais rastreáveis). Quanto mais engajamento nas plataformas digitais, mais capital para as big techs. Os algoritmos — o passo a passo que permite a interação e também a conversão em dados dos usuários — são vampiros das paixões, dos sintomas e das estruturas psíquicas humanas.

“Que bobagem é essa!”

Depois das polêmicas geradas pelo livro Que bobagem!, de Natalia Pasternak e Carlos Orsi, muitas delas em torno da tentativa de desqualificar a psicanálise, deveríamos nos perguntar sobre o fracasso da ciência positivista nos currículos universitários.

O controle do corpo e da mente está no centro das ambições dos campos disciplinares da área da saúde, que se constituiu enquanto ciência moderna no século XVIII. Desde então, um dos caminhos pelos quais a medicina ganhou destaque foi a comercialização do saber e dos dispositivos sobre a cura, no sentido mais pejorativo que se pode ter. O profissional liberal da medicina está submetido às leis do mercado e, também, age sobre elas. Ele integra a sociedade economicamente desigual e se alimenta dela.

Mas há também um viés no qual a medicina se alicerça, o da linguagem enquanto campo de unificação do discurso científico. Pasternak, mesmo desconhecendo que seu discurso não ultrapassa a ciência positivista, critica a psicanálise sem ao menos se apropriar da linguagem psicanalítica. A psicanálise torna-se uma grande bobagem se você não domina a linguagem da área pela qual a crítica se estende por um motivo simples: é pela linguagem que o fenômeno se dá a ver. O fenômeno não se faz percebido sem uma teoria. Algo como: eu vejo o sol girar em torno da Terra, mas a teoria me leva a compreender que é a Terra que gira em torno do sol. 

Para “salvar” a sociedade e a democracia, é preciso ultrapassar o positivismo tosco. Não é com punição — aos envolvidos do episódio — nem com a redução do corpo ao biológico que se pode depurar a sociedade da violência sistêmica. Ao contrário, é pela circulação das palavras e dos afetos, de nomear aquilo que produz sofrimento e implicar os sujeitos no processo que se abrem as vias da emancipação e do espaço de convivência do comum.

Em síntese, faltam mais as chamadas ciências humanas nos cursos superiores. Quando faltam as humanidades, sobram “bobagem” e violência simbólica. Ao contrário das equivalências fanfarreias de Pasternak, de que a “psicanálise seria o homem-bomba no prédio das humanas”, a perversão ganha espaço nos cursos superiores, sobretudo de medicina, por meio dos quais alunos exibem suas próprias anatomias, até caírem no ridículo com a viralização da cena num misto de sátira e espanto.

A ameaça não vem da psicanálise, porém da ausência das ciências humanas nos currículos como mobilizador do desejo e da potência emancipadora dos sujeitos. 

*José Isaías Venera é professor do PPGE da Univille e dirigente do Sinpro Itajaí e Região

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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