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    "Quando cheguei a Barcelona para buscar emprego, tive um choque: entrei em um prédio que tinha dois elevadores e nenhuma placa para distinguir qual era o de serviço e qual era o social." Crédito: Acervo pessoal de Gabriella Figueredo

depoimento

“Fui instruída a usar apenas o elevador de serviço”

Filha de porteiro conta como foi orientada a nunca tomar elevador social, até que um mestrado na Espanha a fez questionar esse lugar

Gabriella Figueredo | 20 jul 2023_16h37
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No início de julho, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, sancionou uma lei que pro víbe as denominações “elevador social” e “elevado0r de serviço” nos prédios particulares da cidade. O texto da lei, que ainda não foi regulamentada, argumenta que é preciso coibir qualquer forma de discriminação. O assunto é familiar para a carioca Gabriella Figueredo, de 34 anos. Filha de porteiro, ela cresceu sendo instruída a usar somente o elevador de serviço, para evitar causar o desconforto de outras pessoas. Hoje, investiga o que está por trás da distinção entre os dois elevadores.

Em depoimento a Thallys Braga

Em 2019, eu tinha 29 anos e estava, finalmente, realizando o sonho de estudar no exterior. Formada em letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, embarquei num avião para fazer o mestrado de Belas Artes na Universidade de Navarra, em Pamplona, na Espanha. Quando cheguei a Barcelona para buscar emprego, tive um choque: entrei em um prédio que tinha dois elevadores, um do lado do outro, e nenhuma placa para distinguir qual era o de serviço e qual era o social. Eu travei, sem saber em qual entrar. Ainda criança, aprendi que o meu lugar era no elevador de serviço. O que eu deveria fazer agora? Como eu poderia saber se não estava violando alguma regra ou invadindo o espaço de alguém? 

Fui criada pelos meus pais, dois retirantes da Paraíba que, nos anos 1980, decidiram tentar a vida no Rio. Quando eu completei 3 anos, eles se mudaram comigo para um prédio de gente rica na Rua Barão da Torre, em Ipanema, na Zona Sul da cidade. Meu pai virou o porteiro do prédio e, ali, ganhamos abrigo: uma dependência com uma grande sala que fizemos de quarto, além de um banheiro e uma cozinha. É onde moramos até hoje. 

Na infância, dividi a área de recreação do condomínio com os filhos dos moradores ricos. Eu podia circular pelo prédio sem qualquer restrição (embora às vezes tivesse que ouvir das crianças ricas que eu nunca iria à Disney com elas). O meu pai só me pedia duas coisas: chame todo mundo de “senhor” e “senhora”. E sempre, sempre use o elevador de serviço. Esta não foi uma imposição dos moradores, mas um comportamento que o meu pai adotou para não incomodar ninguém. O intuito era permanecer sempre invisível. Em toda a minha vida, só usei o elevador social em raras ocasiões, quando o de serviço estava quebrado. Estranhava porque o social tinha espelho, era mais bonito.

A faculdade de letras foi um grande divisor de águas na minha vida. Escolhi esse curso para sanar o desejo de entender o mundo através da literatura. Na graduação, lendo Lima Barreto, eu pude olhar para mim e me encontrei com a questão do elevador. Foi com o livro Recordações do Escrivão Isaías Caminha que eu tive o estalo de me questionar: qual é o lugar de cada um na sociedade? Por que certas pessoas são levadas a usar o elevador de serviço e outras, o social? 

Nutri esses questionamentos e, quando cheguei na Espanha para estudar, tudo explodiu dentro de mim. Diante de dois elevadores comuns, sem placas de distinção, percebi que o mundo não era como o Brasil. Na primeira conversa que tive com o meu pai pelo telefone, toquei no assunto. Ele ficou surpreso e me falou sobre uma situação que até então eu desconhecia: certa vez, um entregador chegou ao nosso prédio para deixar uma encomenda. Como o elevador de serviço estava quebrado, meu pai falou para ele usar o social. O homem chorou, dizendo que nunca tinha sido autorizado a entrar no elevador social.

 

As conversas que eu passei a ter com o meu pai sobre o assunto sempre terminavam com a gente concordando em um aspecto: o Brasil nunca vai mudar. Temos a noção de que a classe política nos prometeu um país que ainda não conseguiu entregar. A discriminação social no uso do elevador é silenciosa: está no olhar, na surpresa de quem se vê dividindo o espaço com a filha do porteiro. Como a lei sancionada pelo prefeito Eduardo Paes será aplicada? Vão tirar as plaquinhas de todos os prédios da cidade? Certamente haverá resistência dos moradores. A lei é importante, mas está longe de resolver o problema. A sociedade vai se empenhar para mudar a mentalidade classista?

A questão está enraizada, inclusive em mim. Hoje, mesmo depois da graduação e do mestrado, eu sempre escolho o elevador de serviço. Por quê? Não sei responder. É uma coisa que foi construída quando eu era criança, está atrelada à minha pessoa. Não posso negar que isso me faz questionar qual é o meu lugar. Só entro no elevador social quando alguém me autoriza, dizendo: “Você pode ir nesse aqui.” Isso também acontece com outras filhas de porteiros, que se tornaram minhas amigas. Por mais que eu brincasse com as crianças do meu prédio, só consegui fortalecer os laços com os filhos dos colegas do meu pai, também porteiros.

Terminado o mestrado, voltei para o Brasil com o desejo de não sair outra vez. Os estigmas de classe viraram um assunto caro para mim. Em 2021, ganhei um programa na TV Democracia que batizei de Elevador de Serviço, onde me reunia com convidados para discutir o preconceito no Brasil. Com dificuldades para encontrar empregos na área de Letras, consegui o emprego de livreira em uma livraria no Leblon e, no meio dos livros, nutri ainda mais o desejo de escrever sobre a minha família, da mesma maneira que fizeram a Annie Ernaux e o Didier Eribon. 

O meu livro começará com a história do meu pai. Depois, retratarei tudo o que senti na minha ida à Espanha e os conflitos internos que enfrentei durante a pós-graduação. Eu gostaria de terminar a narrativa com um conto que começa em 1994 — o ano em que chegamos à Rua Barão da Torre — e acompanha a família de um porteiro. Não é coincidência, é autoficção. Depois de ter perdido o meu emprego, no início de julho, concentro minhas esperanças e energias em escrever sobre uma classe que foi deixada de lado. Estou falando dos porteiros, dos vigias, dos empregados. Essas pessoas que conseguiram comprar um carro e viajar de avião pela primeira vez nos anos 2000, mas nunca foram protagonistas de novela.

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